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Chuva e frio

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Sábado de manhã, chove e faz frio, você está debaixo das cobertas indeciso quanto a levantar-se ou não. De todo modo está bem acordado, não vai dormir mais e a cama está gostosa. Basta conseguir não pensar em nada para que a situação continue perfeita.

Mas é aí que você se lembra de que tem cabeça, dentro dela um cérebro formado por bilhões de neurônios interligados que adoram enviar, um ao outro, impulsos elétricos que viram pensamentos, memórias etc. De repente você imagina como seria bom bloquear essas transmissões, legal se o cérebro fosse como um rádio, uma televisão ou qualquer outro aparelho que pode ser desligado com o simples aperto um botão. O problema é que ao imaginar isso você já está pensando, daí concluir que a gente não para nunca de pensar, somos seres escravos do pensamento.

Já que não é possível parar, você passa a raciocinar sobre vantagens e desvantagens de uma lobotomia e acaba concluindo que o melhor é ficar como está, sofrendo de tanto pensar, mas consciente de si e do mundo que o cerca. Cirurgia na cabeça pode não dar certo: em “Um Estranho no Ninho” Jack Nicholson fez o papel de um interno de hospício que foi submetido a uma lobotomia e a coisa toda não acabou bem. Talvez você até permitisse que fizessem algo com a sua cabeça caso fosse possível atender a um pedido como aquele feito por uma personagem do Ignácio de Loyola Brandão: o sujeito foi a um Pronto Socorro exigir que apagassem a memória dele porque não queria mais se lembrar de nada.

E você? Também não quer se lembrar de nada? Nem das coisas boas? A pergunta fere fundo porque a vida anda tão complicada que as coisas boas são raras;  a última delas foi um favor inesperado que você recebeu de um desconhecido e rendeu uns bons trocados. Mas você não quer mesmo é se lembrar das contas a pagar, do colégio dos filhos, da sua mulher que se levantou bem antes e anda tão insatisfeita, do amor que vai cedendo lugar a discussões bestas e sem sentido, do pessoal da firma em que trabalha, do seu time do coração que só perde e deixa você tão irritado, do médico que dá ordens dizendo não coma isso e aquilo, do imposto de renda, da crise mundial,das multas de trânsito, do vazamento na cozinha, da velhice chegando, do medo de sofrer para morrer e de tanta coisa que você  evita pensar, mas já pensando.

Você pega o controle remoto no criado-mudo e imagina ser o Peter Sellers em “Muito Além do Jardim”, no papel de um jardineiro que nunca havia saído à rua e conhecia o mundo só pela televisão. Quando algo o incomodava, simplesmente mudava de canal. Um dia saiu de casa e, quando as coisas se complicaram, tirou o controle do bolso e clicou para mudar o canal da realidade. Mas não é possível desligar o mundo real, daí que você desiste e não liga a televisão. Então fecha os olhos, puxa as cobertas sobre a cabeça e fica assim, sozinho no escuro, escondido do mundo, deitado em posição fetal, sentindo-se de alguma forma protegido.

Chove e está frio. Você se lembra de um poema de Paul Verlaine que começa dizendo: “chove, que bom, ficaremos em casa” - e assim por diante. Então é assim, Paul Verlaine estava certo, é exatamente isso que você vai fazer hoje e pronto. Nada de se levantar, sair, enfiar a cara num mundo que insiste em afrontar as pessoas.

Você está recitando baixinho os versos do Verlaine, quieto debaixo das cobertas, a seu modo vingando-se de tudo com a negação da realidade em um dia de chuva . É quando a sua mulher entra no quarto e abre a janela. Ela traz uma bandeja com café, você repara que ela está muito bonita nesse dia tão frio e de chuva e no cuidado com que derrama o café na xícara. Depois ela se aproxima, dá um beijo na sua testa, diz bom dia e a vida já não parece tão ruim assim, dá até para adivinhar o que você pretende fazer daqui a pouco, assim que tomar um bom gole de café.