envelhecimento e morte at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para ‘envelhecimento e morte’ tag

Na velhice

escreva o seu comentário

No consultório a médica me pergunta como me sinto em relação a minha idade. Penso para responder. A médica é jovem, tem a vida frente. Já fez toda anamnese e termina o inquérito com essa pergunta. Olhamo-nos. Antes que eu diga qualquer coisa ela acrescenta que não aparento a idade que tenho. Será?

Respondo, finalmente, ora, que me sinto muito bem. A idade não me preocupa. Deixei de correr depois da cirurgia de coluna, mas sigo andando uns bons quilômetros. Digo que, o problema é não considerar que estou velho. Ela me interrompe: mas isso é bom. Numas, afirmo. Por exemplo: deveria lembrar da minha idade ao atravessar ruas de grande movimento; mais cuidado ao dirigir porque não tem jeito, os reflexos já não são os mesmos.

Mas, tem gente de mais de 70 que se entrega à velhice, o que é pior. Um conhecido recolheu-se à sua casa e chora muito. Exagerou no cigarro e no álcool e sua saúde não é lá essas coisas. Mas, o diabo é a depressão. A depressão traz tristeza e lágrimas. Chora-se pelos erros do passado, pelo que poderia ter sido realizado, por tanta coisa. Incrível como as coisas boas do passado parecem perder o peso. Parece até lavagem cerebral o fato de se lembrar apenas de coisas depressivas.

É certo que incomoda - e muito - a falta de perspectivas em relação ao futuro. Depois dos 70 o futuro é nublado. Não se sabe até onde a vida seguirá. Mas, e daí? Tem gente que fica sentada, esperando a chegada da morte. Bobagem. Digo isso à médica. Ela sorri. Mas, não deixa de perguntar se não ando meio depressivo. Respondo que, para ser sincero, não tenho tempo livre para isso. Quem sabe, se ficasse mais em casa…

Saí do consultório e retornei ao meu mundo no qual não faltam problemas. Isso cansa. Confesso que imaginava situações bem mais calmas na velhice. Mas que fazer nesse mundo convulso no qual os atores que têm nas mãos o poder erram e erram? Quanto desgoverno mundo afora.

Ligo o computador. Abro um e-mail de um antigo colega de faculdade. Ele se deu ao trabalho de pesquisar o destino dos colegas da nossa turma. Éramos oitenta na formatura. De lá para cá dezesseis morreram. Pô! Incrível. Dezesseis? O que deu nessa gente para desertar sem aviso prévio.

Leio os nomes dos colegas falecidos. Nunca mais os vi depois da faculdade. Daí que guardo na memória as imagens deles quando jovens. Impossível que Fulano, jovem e forte nas minhas lembranças, tenha morrido. Não faz sentido. Pensando bem, talvez a vida não faça sentido.

Escrito por Ayrton Marcondes

17 maio, 2019 às 1:03 pm

escreva o seu comentário

Desconforto

escreva o seu comentário

Leio que uma senhora doou seu corpo para pesquisa científica. Fez isso há alguns anos. Morreu nesta semana e os que a conheciam estranharam que não houvesse enterro. Ocorrido o óbito a filha encarregou-se de avisar a entidade de pesquisa para a entrega do corpo.

Perguntei a um amigo se ele doaria seu corpo para pesquisas. A estranheza da pergunta deixou-o sem resposta. Ele pensou um pouco e me devolveu a mesma pergunta.

Eu? Rapaz… Esse corpinho aqui do qual cuido tanto… Ora, mas se estarei morto, que diferença faria ser comido por vermes ou retalhado a bisturis?

Não sabendo bem o que responder ponderei que talvez sejamos incapazes de dissociar o corpo do vivo daquele depois de morto. Separar a identidade pela inevitabilidade da morte é coisa complexa e difícil. Enquanto estou vivo imagino que continue a ser eu mesmo depois de morto, embora saiba que as coisas não se passam desse modo. Mas é o vivo quem pensa em seu corpo nu e exposto sobre uma mesa num laboratório de anatomia. Imaginar-me nessa situação, indefeso, ausente, submetido aos caprichos de um pesquisador ou algum estudante realmente causa-me desconforto.

O corpo de quem está vivo é uma propriedade particular da qual ninguém está à vontade para disponibilizar. Talvez pela posse inalienável de meu corpo eu jamais me disporia a doá-lo, mesmo depois de morto. Afinal, esse corpo sou eu a ideia de doá-lo me surge constrangedora.

Ademais, não imagino como ficam os familiares de alguém que doou seu corpo. Como é saber-se que os corpos de seu pai, sua mãe ou seu filho estão naquela rua, naquele prédio, insepultos? E se você tiver alguma inclinação a revê-los?

Felizmente, nem todo mundo pensa assim. Os cadáveres prestam inestimáveis serviços à formação de profissionais que se tornam aptos a auxiliar seus semelhantes. Daí que nesse caso pode parecer egoísmo negar-se a tão nobre ato de contribuição com os nossos semelhantes.

Lidar com a morte é difícil. Na medida em que envelhecemos somos gradativamente cercados por ela. Trata-se de uma cela na qual as paredes se movem lentamente, mas sempre no sentido de reduzir o espaço que de que dispomos.

Há quem tenha muito medo da morte. Uma das minhas tias recusou-se a emprestar seu vestido à irmã que falecera num acidente. Na ocasião ela me disse que não dormiria mais se soubesse que a irmã fora enterrada com um vestido de seu guarda-roupas.

Enfim…