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A grande Ella Fitzgerald

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Sempre Mariana com o jeito muito dela de dizer as coisas, concordando em parte, discordando de quase tudo para, no fim da conversa, dar uma colher de chá, distribuir um de seus raros sorrisos e dizer que as coisas existem para isso mesmo, para serem observadas de modo diferente pelas pessoas, senão que graça haveria em tudo?

Para Mariana tudo era uma questão de ritmo, de notas apressadas juntando-se numa pauta imaginária com se o mundo fosse regido por maestro pós-moderno, muito além de Stravinsky e de tudo o que se criou depois dele, inclusive a música dodecafônica do Schoenberg.

Mariana se entendia e desentendia comigo musicalmente naquela sua pachorra de ritmar nossos atos como se fizessem parte de uma ópera. Tínhamos similaridade de gosto, poucas é verdade. Ela gostava de jazz como eu embora nossos músicos preferidos fossem diferentes. Ela amava Charlie Parker, eu preferia Coleman Hawkins; para ela Sarah Vaugham era a melhor, para mim ninguém estava acima de Ella Fitzgerald, nem mesmo Billie Holiday. Ambos amávamos Gerswin e esse era um dos raríssimos pontos em que nossas opiniões convergiam. Lembro-me de que certa vez passamos uma tarde inteira ouvindo Rapshody in Blue, os dois em silêncio, meditando sobre a composição de um cara como Gerswin, tão genial que só poderia mesmo ter morrido em razão de um tumor na cabeça.

Do tempo que passamos juntos não há muito a dizer, senão dos longos passeios que fazíamos juntos, errando por ruas que não conhecíamos, muitas vezes procurando um ao outro numa área mais ou menos delimitada de quarteirões. Mariana gostava muito disso, era fetiche dela que nos encontrássemos, inesperadamente, numa rua qualquer e depois disso fôssemos curtir nossos corpos no pequeno apartamento que ela alugara há algum tempo. Naquela época ela acabara de ler “O Jogo da Amarelinha”, do Cortázar, e acho que queria experimentar a liberdade de começar um romance a partir de qualquer ponto, sem antes, nem depois, como costumava dizer.

Sem antes, nem depois. Numa tarde eu estava no apartamento dela, deitado no chão, ouvindo a Ella Fitzgerald cantar “I Could Have Danced All Night”. Mariana chegou de repente e me pediu que desligasse ou colocasse um disco da Sarah Vaugham. Achei o fim do mundo ela interromper algo que me dava tanto prazer, isso para satisfazer a um imperativo qualquer. Além do quê a Sarah não tinha as oitavas da Ella, o negócio da Sarah era o vibrato daí ser melhor ouvir a Ella. A partir daí a discussão tomou pé até cair nessa coisa toda de gosto, de diferenças pessoais e relacionamentos que não podem continuar porque as pessoas são estupidamente diferentes.

Não vou contar todo o resto da discussão, mas saí do apartamento no bairro da Bela Vista para não mais voltar. Não me recordo quantos anos se passaram desde então até hoje quando vi, de longe, a Mariana andando na Avenida Paulista. Confesso que o meu primeiro impulso foi correr atrás dela, mas parei porque afinal somos tão diferentes - ela Sarah Vaugham, eu Ella Fitzgerald. Ainda assim, eu a segui por uns dois ou três quarteirões até que me ocorreu que talvez ela tivesse me visto e por isso andasse depressa na direção do metrô.

De novo em casa liguei o som e coloquei no pick-up o vinil “Ella Sings Broadway” – odeio o som dos CDs. Não demorou e lá veio Ella cantando “I Could Have Danced All Night”, ela com seu corpo grande e voz maravilhosa, tão inocente como se nada tivesse com o fim do meu caso com a Mariana.