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O caso “João Brandão”

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O João Brandão era um moleque gordinho e um pouco devagar. Nada quanto à inteligência, talvez um desacordo entre a esperteza esperada e a idade. Aliás, na época a que o fato se refere, o João tinha lá seus treze anos.

Bonachão, os meninos do ginásio - naquele tempo era o ginásio - o chamavam de Jão. O Jão se dava por muito esquecido das coisas. Atribuía suas deslembranças ao fato de comer muito queijo - queijo não seria bom para a memória.

Mas, o Jão era um ótimo sujeito. Gente muito boa. Os colegas - amigos? - tiravam algum sarro dele pelo jeitão desengonçado. O Jão era só um sujeito gordinho, não muito rápido, daqueles que não se convida para entrar no time.

O Jão tinha no Luís seu melhor amigo e companheiro. O Luís, na verdade, meio que protegia o Jão. Trazia-o sempre a tiracolo, inteirava-o das coisas, incluía-o no círculo. Esse Luís era filho do dono da farmácia e tinha lá um parente deputado. Baixinho, ligeiro, ideias claras, excelente companheiro.

O terceiro figurante dessa história era um tal Rafael, menino vindo do interior, tipo mais para simplorião. O Rafael tinha suas idiossincrasias mais calcadas na vida em pés descalços, ruas de terra e conterrâneos de muita simplicidade.

Pois aconteceu de certo dia, encontrarem-se os três na casa do Jão. Era primeira vez que o Rafael ia lá. Aconteceu, também, da mãe do Jão servir bolo para a molecada. Sentados à mesa da copa eis que, talvez pela falta de assunto, a mãe do Jão perguntou ao Rafael sobre como era o filho no ginásio.

Bem, o Rafael não se fez de rogado, foi logo entregando o Jão. Descreveu minuciosamente como o Jão era fora de casa, a dificuldade dele em fazer parte da turma, caracterizou o amigo como um tipo mais para bobão.

A cada palavra sua o Rafael recebia olhares de reprovação do Luís para quem aquela “entrega” nada tinha a ver. Quanto ao Jão, manteve-se de cabeça baixa, cara ingurgitada e um sorriso bobo perdido nos lábios.

Mais tarde, ao saírem, o Luís disse ao Rafael: você nunca poderia ter feito o que fez.

——

Entretanto, esse era, de fato, o Rafael. Cresceu, deu-se bem na vida, mas manteve sob a pele esse lado incontrolável, quase desconhecido. Bom homem, cumpridor, bom chefe de família, bom pai, etc. Mas, em raras oportunidades, sob algum tipo de pressão, libertou-se esse outro Rafael que vivia dentro dele. Em duas ou três ocasiões, nas quais poderia muito bem ter mantido a boca fechada, o Rafael não se conteve, entregando alguém conhecido de quem sabia algo que o prejudicaria.

Estranha a contradição dessa que talvez não possa ser caracterizada como dupla personalidade. Submerso nos confins da alma de um homem um fantasma de mediocridade que, vindo à tona, torna-se perigoso.

Dizem que em cada um de nós existem alguns outros, os quais sufocamos na medida do possível.

Escrito por Ayrton Marcondes

23 janeiro, 2019 às 10:48 am

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