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Machado de Assis: o homem e a obra

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O tema é recorrente e atravessa décadas, sugerindo que jamais poderá ser devidamente elucidado: como explicar a obra machadiana em confronto com o homem Machado de Assis?

As biografias de Machado tendem a vê-lo sob dois ângulos: o primeiro se atém a vida do escritor propriamente dita, lida através de depoimentos de seus contemporâneos e fatos conhecidos sobre a sua existência; o segundo é o que alia às características anteriores a trajetória das personagens dos romances de Machado de Assis. No primeiro destaca-se a obra de Mário de Alencar, filho do escritor José de Alencar, que privou do convívio de Machado no final de sua vida. O último Machado, viúvo e solitário, teria abandonado, pelo menos em parte, a sua notória reclusão e deixado transparecer a Mário de Alencar o aspecto humano que se escondia sob a face pública do escritor. No segundo evidencia-se o esforço dos biógrafos em suprir lacunas de períodos desconhecidos da vida do escritor com passagens da vida de suas personagens.

Em ensaio, de 1954, sobre Dostoievski, Olívio Montenegro lembra que, para André Gide, “raramente um autor de romance chega a fundir-se com tanta naturalidade nos seus personagens como Dostoievski”. Continua Montenegro dizendo que se constitui em grande problema para a crítica indagar se o homem é inseparável do artista, ou pelo contrário, se a arte esconde o homem. Sobre esse assunto afirma Montenegro:

Não se acerta, por exemplo, em concordar o acento divinamente lírico, a doçura de um tão suave misticismo da poesia de Verlaine, da sua poesia inefável de “Sagesse” com a desordem que se via no homem com a sua concupiscência e seus excessos de boêmio; da mesma maneira que não se identifica o sólido senso pedagógico nem os pensamentos desinteressados e vivos que se encontram no “Emílio” de Rousseau, com o selvagem egoísmo do homem que manda para a roda todos os filhos; nem por outro lado se encontra uma fórmula para conciliar em Bacon o cortesão e o filósofo, ou em Rafael o grande libertino e o pintor de Madonas.

Que me perdoem pela lembrança, mas talvez os mais jovens não tenham notícia sobre a roda, lugar onde eram colocados os nascidos indesejáveis sem que os pais fossem identificados. Essas crianças, acolhidas por entidades beneficentes, eram adotadas por famílias que desconheciam a origem delas. Vale citar que o fato de Rousseau enviar os filhos para a roda, citado por Montenegro, me era de todo desconhecido.

Não será este o espaço adequado para aprofundamento da discussão sobre o perfil de Machado de Assis relacionando-o à obra que nos deixou. O homem Machado legou à posteridade, talvez propositadamente, um perfil enigmático de si mesmo. Em vida ele não passou de um funcionário público bem comportado cuja rotina consistia em ir de casa ao trabalho com passagens pela Livraria Garnier, na Rua do Ouvidor, ao fim do expediente. Na livraria reunia-se com alguns amigos e mais ouvia que falava, reservando-se o direito de sair quando o tema eram assuntos picantes, política etc. Alguns biógrafos insistem em caracterizá-lo como mestiço e epiléptico vendo nessa condição êmulos para a obra que ele escreveu. Outros não o perdoam pelo aspecto nada pictórico de sua obra, dado que não se empenhou em incluir a natureza do país em seus romances. Todos concordam no fato de que Machado era um sujeito retraído, mas nem por isso deixando de ser gregário: de seus esforços nasceu a Academia Brasileira de Letras à qual presidiu.

O mulato pobre que circulava pelas ruas do Rio de Janeiro em pleno império regido por Pedro II tornou-se um grande intelectual e deixou obra ímpar, ainda hoje insuperável. Se não se aventurou pessoalmente, o fez através de suas personagens que passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros como se fossem seres reais. Bráz Cubas, Capitu, Quincas Borba e tantos outros se incorporaram à cultura do país e mesmo hoje são muito lembrados e citados pelas situações romanceadas em que se envolveram, situações essas algo inesperadas quando se pensa na trajetória do homem que as forjou.

Retomando a dúvida de Olívio Montenegro, parece-nos que, em relação a Machado de Assis, a arte escondeu o homem. Mas, que isso não seja tomado em definitivo: Machado de Assis é sempre imprevisível e, de repente, numa de suas crônicas, despretensiosa, poderemos encontrar um desmentido a essa conclusão.

As personagens de ficção

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Ao longo de nossas vidas convivemos com seres reais e, em geral, damos pouca importância aos fictícios. A torturante rotina dos dias atuais concorre para que não se dê grande importância ao mundo imaginário. Fica, portanto, a ficção como uma espécie de muleta à qual recorremos para amenizar, pelo menos temporariamente, as questões cotidianas.  Tal atitude seguramente afeta o nível de prazer que a boa ficção pode proporcionar. Vá lá que a ficção funcione como refúgio, mas, nem de leve, será essa a sua principal função.

Pode ser que as pessoas não se deem conta, mas a ficção funciona como mundo paralelo à realidade. Comprova essa afirmação a influência exercida pelas personagens de ficção sobre quem com elas faz contato. Pensando bem, ao longo dos anos, travamos contato com inúmeras pessoas que vivem apenas nas páginas dos livros. Pode ser que também olvidemos o fato, mas muitas delas exerceram e exercem influência sobre o nosso modo de ser e pensar, muitas vezes de forma mais expressiva que pessoas de carne e osso a quem conhecemos. Talvez esse fato se explique porque nas páginas dos livros chegamos a conhecer a alma das personagens mais profundamente que a de muitas pessoas que nos cercam e que, em geral, não se revelam por inteiro. Quem duvida que pense em gente como Raskolnikof e Lord Jim. As penas de Dostoievski e Conrad deram-nos essas personagens por inteiro, de modo que se tornaram familiares a nós. O duplo que existe em Lord Jim é universal, mais real do que muitos seres reais de nosso convívio.

As pessoas mais jovens talvez não imaginem mas há não muito tempo a televisão não era nem de longe o que é hoje. Na verdade, há cerca de cinco ou seis décadas, a televisão brasileira engatinhava. Assistir a um canal de televisão em cidades distantes da capital era quase um milagre. Antenas colocadas em locais elevados, fios longos ligando antenas a aparelhos de televisão e outros recursos inimagináveis eram usados para recepção de imagens sem cor, por vezes borradas, muitas vezes irreconhecíveis.

Vai daí que para o lazer contribuíam não as novelas de hoje mas as tramas escritas em livros. Foi assim que, mal saído da infância, mergulhei no romantismo, lendo, por exemplo, a obra de José de Alencar. Jamais sairão da minha memória os malfeitos do vilão Loredano que apoquentava, através de mil ardis, a vida dos heróis Peri e Ceci.

Estou dizendo que mais de quarenta anos depois, Loredano continua vivo para mim, inesquecível. Eu o conheço bem, sei do ele que é capaz. Parece-me que ele está apenas preso nas páginas de “O Guarni” e que alguém deve cuidar para não deixá-lo sair de lá, tal o perigo que oferece. Loredano é, para mim, mais integral que muitas pessoas a quem conheço ou conheci e nisso consiste toda a força com que a literatura de ficção nos subjuga.

Os muitos anos de leitura nos tornam próximos de personagens de ficção, de mundos imaginários que não se desfazem. Vida afora trava-se contato com personagens de ficção: como acontece com os seres reais, a muitos deles deixamos no caminho, esquecendo-nos deles. Outros, por assim dizer, grudam em nossas memórias e os levamos conosco como parte integrante de nossa cultura e sentido de humanidade. O fato é que se torna impossível olvidá-los, condição que confere a eles mais realidade que a atribuída a muitos seres reais.

Não adianta discutir e nenhum argumento, por mais sensato que possa ser, me demoverá da absoluta certeza de que conheci – e muito bem – pessoas como o Cândido, de Voltaire, o Bráz Cubas, de Machado de Assis, o Macbeth, de Shakespare, o Joseph K, de Kafka, e muitos outros. Essas pessoas fizeram e fazem parte do meu mundo, dando à minha vida um sentido de grandeza que ultrapassa a condição da realidade em que vivo.