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O Chico

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O Chico morreu há alguns anos, vitimado por enfarte fulminante. Não consta que até então estivesse doente ou sofresse de algum mal. Coração tem dessas coisas, obedece ao previsto no DNA da gente sobre a hora de parar. Hoje em dia, com os novos recursos da medicina, tornou-se possível enganar o órgão: em casos muito graves e mesmo perdidos o transplante é a solução. Isso sem falar nos rotineiros implantes de safena que revigoram corações tecnicamente falidos.

Os médicos não se cansam de avisar sobre os perigos do fumo, mas vício é vício e muita gente não consegue safar-se dele. Conheço pessoas safenadas que voltaram a fumar tempos depois da alta hospitalar. Não sei dizer se é de desapego à vida ou incontrolável compulsão pelo cigarro. Tenho para mim que em matéria de parar de fumar, não existe outro remédio que não a decisão firme. Cheguei a fumar três maços de cigarros por dia até que, certa ocasião, disse não. Enfrentei o diabo a partir daí. Comprei maços de cigarros e espalhei pela casa porque senão seria tentado a ir busca-los. Era guerra diária, nervosismo, luta terrível na qual o que conta mesmo é vencer um dia de cada vez. Durante uns dois meses eu repetia inutilmente o movimento de colocar a mão no bolso, procurando o cigarro. Força do hábito, aliás perdido devagar e custosamente.  Depois de um ano eu ainda sonhava que estava fumando e tinha enorme prazer nisso. Mas, passou. Até hoje, decorridos vinte anos desde que abandonei o fumo, não coloquei um cigarro na boca. Tenho certeza de que me bastará apenas um, unzinho só, para que eu saia de casa e vá à padaria da esquina para comprar um maço.

Falo sobre cigarros, mas o meu assunto é o Chico. Bem, ele não fumava. Viveu na placidez de uma cidadezinha montanhosa da qual, a bem da verdade, nunca saiu. Herdeiro de terras fez os seus negócios e, se não chegou a ser rico, viveu com folga. Era comum vê-lo saindo de suas terras onde criava poucas cabeças de gado e mantinha plantações. Casou- se tarde e deixou, quando morreu, a viúva sem filhos. Mas, o que mais chamava a atenção nele era o curioso hábito de comprar coisas e estocá-las. O Chico tinha alguns fogões, geladeiras e outros eletrodomésticos que nunca chegou a tirar da caixa. Comprava-os como investimento. Tinha também um s poucos veículos, entre eles um caminhão.

Nunca entendi bem a lógica em manter um televisor dos anos 60 bem guardado na caixa, sem nunca ter sido usado, décadas a fio. Fazia sentido para o Chico que teria forma diferente de olhar essa vida.

Cada um tem direito a uma parcela, pequena que seja de esquisitice. O Chico tinha a dele, ininteligível para mim.  Eu gostava muito do Chico e senti demais quando ele morreu.

Saudades do Chico que, vez ou outra, prestava serviços de transporte de pessoas com o seu carro, embora não prestasse, habitualmente,  serviços de táxi. Saudades de um bom sujeito que morreu cedo, talvez por descuido, ou simples distração.

Escrito por Ayrton Marcondes

11 maio, 2012 às 11:32 am

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