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Um dia depois do outro

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- Esse desânimo! Nada parece forte o suficiente para quebrar a rotina desanimada que avança ao longo dos dias. Talvez a mesmice de tudo, as queixas de sempre, pessoas indo e vindo com problemas na maioria solucionáveis, uns tantos sem solução aparente. No fundo nada de importante, nada que possa mudar governos, nada capaz de alterar o nada a que, no fim das contas, tudo se reduz.

Ouço as coisas depressivas, elencadas acima, de um amigo que me fala ao telefone. Acossado por doença resiste ele ao agravamento de sintomas que incluem crises de dor. É a dor que quebranta a solidez desse homem sempre forte e resoluto, agora recolhido à própria casa, olhando para o mundo como lugar em que habita, mas não mais experimenta.

E dizer que esse homem tão ativo agora se curva à insensatez de doença grave contra a qual pouco pode. Passa a depender de médicos e tratamentos, de condições impostas as quais no fundo – ele sabe bem disso – alongarão seus dias de vida, talvez com mais sofrimento, mas não resolverão o problema dele. Porque a doença que o submete, todos sabem disso, pertence à categoria das que não recuam. Remédios podem, sim, atrasar a progressão do mal que por fim e infelizmente acabará triunfando.

Desligo o telefone e penso nesse amigo, tão lúcido e altivo, tão forte, cuja força devagar sucumbe à doença. Fecho os olhos e torna-se possível revê-lo em seus bons momentos, homem alto, austero, decidido, amigo de seus amigos a quem não trai de jeito nenhum. Pois é ele quem agora me chama, nas entrelinhas deixa muito claro que me quer por perto, roga por visitas frequentes, é a mim que o amigo escolheu para ajudá-lo a suportar o transe pelo qual passa.

Não sei como dizer a ele que não reúno forças para tanto. Não serei eu, a essa altura da vida, o companheiro ideal para auxiliá-lo na grande travessia, se é que alguém pode mesmo ser útil a ele durante o período que se avizinha. Daí que confesso a minha incompetência para a tarefa solicitada. Deixo aqui expressa, também e publicamente, a minha covardia diante de fatos ligados à morte com a qual não quero nem pretendo tratar até que não me seja possível ignorá-la.

Que me desculpe o amigo de tantas horas e segredos compartilhados. Sei, perfeitamente, que estou a abandoná-lo no momento em que mais precisa de mim, mas que posso fazer se humano sou e incapaz me sinto para ficar de par com ele até o instante final?

PS: Recebi esse texto de um leitor que não se identificou. Imagino que a intenção dele seria a de registro de suas palavras em algum lugar, um blog por exemplo. Sigo o que me pareceu ser de vontade do leitor, publicando o texto que me enviou. Em casos dessa natureza o melhor é nada dizer, optando-se pelo silêncio distante e respeitoso.