Bondade divina at Blog Ayrton Marcondes

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Notícias do Brasil

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Ao telefone um parente que mora no exterior pede notícias sobre o Brasil. Tenho vontade de dizer que as coisas estão como sempre, mas não. Ele soube pelo noticiário internacional da tragédia na região serrana do Rio e me pergunta se é o que dizem ou há exagero. Repondo que não sei por que de uns dias para cá eu me nego a assistir a qualquer telejornal que se ocupe do assunto. Pudera. O fato é que não dá para assistir, impassível, a uma desgraça daquela dimensão. De parte da perda de bens matérias fica a de centenas de vidas. Digo ao meu parente que não suporto ver pessoas chorando porque perderam tudo ou, simplesmente, porque famílias inteiras estão soterradas debaixo de um mar de lama. O maior problema da realidade acontece quando ela se torna irracional, quando as perdas superam a capacidade de compreensão, quando começa a pairar no ar a terrível pergunta: afinal, o cara que inventou esse mundo era mesmo bom?

Não fiz a pergunta ao meu parente. Ele é muito instruído, verdadeiro rato de bibliotecas que adquiriu cultura invejável. Todo mundo sabe que o apuro de conhecimentos nem sempre anda de braços dados com a fé religiosa. Depois existem aqueles ramos da filosofia que geram tantas dissidências da fé.

Aconteceu ao meu parente: ele que foi batizado, crismado e cresceu dentro de família religiosa, a certa altura divergiu da fé. O fato é que ele chegou à negação de tudo, isso para desespero da mãe dele, senhora de credo e muita fé. Pois. Também aconteceu a ele envelhecer e aproximar-se do pórtico em que a grande dúvida se instala e muita gente socorre-se na fé. Não que ele agora seja carola. Digamos que se afastou de Nietsche e do materialismo dialético que embasou seu raciocínio nos últimos trinta anos. Agora ele é regressista, alguém que junta os cacos de algo que quebrou para ver no que dá. É o insondável, a perspectiva do outro lado o que mais o preocupa.

Portanto, não perguntei a ele se Deus é bom ou não. Mudei de assunto, falei sobre o novo governo e a presidente que ainda não se sabe a que veio. Expliquei que ela recebeu uma herança de popularidade à qual deve fazer jus embora nem de longe tenha perfil para isso. É uma burocrata, uma burocrata algo misteriosa que substituiu a um falante. Aliás, que me perdoem os que admiram tanto o ex-presidente, mas está uma delícia não vê-lo a todo o momento nos meios de comunicação, falando pelos cotovelos, exercitando o seu narcisismo.

No fim da conversa o meu parente perguntou sobre a reação dos brasileiros ao caso Battisti. Respondi que não vi nenhuma reação digna de nota. O ex-presidente recusou-se a extraditá-lo no último instante de seu governo e agora a bola está como o STF que, ao que parece, vai rever o assunto. A minha opinião? Ora, estão segurando o italiano aqui por fidelidade a modelos esquerdistas superados. O Battisti está condenado à prisão perpétua na Itália por atos de banditismo e isso em quatro instâncias. Mais: a razão alegada pelo Brasil de que o prisioneiro poderá sofrer perseguição na Itália não procede, afinal a Itália é uma democracia. Mas, que se pronunciem os juristas.

Desliguei o telefone e não pude deixar de pensar na lógica do Criador, ser infinitamente bom, mas que expõe o homem a tantas provações. Lembrei-me de famílias desfeitas e de tanta gente chorando. Vieram as imagens de Teresópolis e outras cidades vergastadas pela fúria das tempestades. Sinceramente, não me foi possível encontrar lógica em tanto sofrimento. A questão da bondade divina é antiga e sobre ela debruçaram-se grandes filósofos. Quem sou eu para colocar a minha pá nessa terra tão adubada de opiniões? Mas, por que tanta desgraça?

Tragédias como a acontecida na região serrana do Rio fazem-nos pensar sobre o certo e o errado, a bondade e a maldade e, mais que isso, sobre o sentido da vida.

Conversa no táxi

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Entro no táxi na esquina do canal. O taxista é um homem de cerca de 60 anos, muito sorridente. Mal me acomodo e lá vem ele com comentários sobre o calor e o inevitável papo sobre o campeonato brasileiro.

Atuação de juízes, resultados de jogos, classificação das equipes, pressão para o Flamengo ser campeão, sobre isso e muito mais fala o homem, pedindo a minha opinião. Até que passa uma moça bonita e o assunto muda para beleza e coisas boas de ver. É nessa altura que ele assume um tom grave e dispara alguns impropérios contra o destino.

É curiosa a teoria do taxista. Ele me diz que as mulheres bonitas são as mais sensíveis a problemas que afetem as suas aparências. Respondo que se isso for verdade talvez seja porque nas mais bonitas se percebe mais facilmente a ação do tempo sobre a beleza delas.

Ele não concorda e acrescenta que esse mundo foi feito para que tudo acabe lentamente, de modo que possamos presenciar a decrepitude. Nessa altura decido olhar para o espelho retrovisor, buscando a imagem do rosto do taxista: pode bem ser que eu esteja vivendo uma impossível experiência surrealista e tenha entrado num táxi dirigido pelo próprio Machado de Assis.

Machado ou não, o homem prossegue com a sua teoria:

- O senhor talvez não tenha prestado atenção, mas como explicar certos acontecimentos? Já disse ao senhor que o destino da beleza das mulheres é minguar dia-a-dia, irreversivelmente. Então, basta observar bem os fatos para concluir que algo de estranho acontece com certas pessoas, como se uma força maior quisesse afirmar a sua presença e o controle sobre todos nós. O senhor se lembra do João do Pulo? Ela era recordista mundial de salto triplo. O que aconteceu a ele? Ora um acidente no qual ele perdeu o que tinha de mais precioso: uma perna. Pode? E aquele locutor esportivo, o Osmar Santos? Pois num acidente de carro ele perdeu a voz que era o seu instrumento de trabalho. E quanto ao Lars Grael, campeão de vela cuja perna foi decepada durante um acidente em pleno mar? O que o senhor acha disso?

Eu ia dizer a ele que Jorge Luís Borges, cuja paixão era ler, ficou cego e um meu tio, matemático, sofreu um derrame que lhe roubou apenas a capacidade defazer contas. Também me ocorreu um amigo que casou-se com uma modelo lindíssima e sofreu irreversíveis problemas de natureza sexual, ele que sempre fora tão galante e mulherengo.

Mas não disse nada por que chegamos ao local determinado por mim. Já na calçada parei para olhar o carro se afastando e tive a impressão de que nada daquilo fora real, na verdade o motorista não dissera uma só palavra e eu imaginara toda a conversa.

Não sei dizer. Mas entrei no elevador pensando sobre a eterna discussão quanto à bondade de Deus. Lembrei-me das teorias que afirmam que Deus só seria realmente completo criando tudo o que existe, daí ter Ele criado também o mal ou não seria verdadeiramente Deus. Eu me interrogava sobre a bondade divina ao ferir pessoas tirando-lhes justamente aquilo que elas têm de melhor quando cheguei, finalmente, ao escritório e vi pela janela o mar, azul, lindo, maravilhoso, testemunhando com alguma insolência os contrastes deste mundo.