Antônio Gonçalves Filho at Blog Ayrton Marcondes

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Retratos Pintados

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O homem era alto e muito magro, ombros encurvados, voz grave. Tinha um jeito estranho de olhar, de cima para baixo, mas com a cabeça sempre rebaixada. Trajava-se sempre com terno surrado, morava com a mulher em pensões baratas e, sobre o seu passado, sabia-se apenas que era carioca. O mal de sua vida fora o cigarro que largara, embora retendo nos dentes e nos dedos traços permanentes de tons amarelados. No conjunto ele tinha o aspecto de tuberculoso, perfil esse denunciado pela tosse sempre acompanhada de ressonâncias oriundas da caixa toráxica.

Chamava-se Coelho. Profissão: vendedor de quadros pintados. Coelho visitava cidadelas do interior, de casa em casa, atrás de fotografias de famílias, em branco e preto, para colorizá-las e devolvê-las emolduradas. Os clientes, gente muito simples, pagavam valores muito módicos pelo serviço e confiavam uma foto, por vezes a única que possuíam, ao vendedor. A parte do Coelho era enviar as fotos para uma firma do Rio de Janeiro e, cerca de um mês depois, devolver o quadro ao cliente que o pendurava na parede, num dos cômodos da casa, à vista de todos. Quem já viu esse tipo de quadro conhece os percalços artísticos que condicionam uma produção de péssima qualidade. Mas os quadros são de gosto popular e isso é o que realmente interessa.

Conheci o Coelho numa viagem de bonde, serra acima, na direção de Campos do Jordão. Teria eu uns doze anos de idade e, para encurtar a história, tornei-me um vendedor de quadros pintados. Fui treinado pelo Coelho, recebi o material para venda, e lá fui eu, de porta em porta, casebre por casebre, vendendo o sonho de imagens familiares colorizadas dentro de uma moldura. A algumas pessoas vendi, outras recusaram, mas a maior parte dos que visitei ficou na vontade: gostariam, queriam muito ter um daqueles, mas o dinheiro simplesmente não dava. Houve o caso de uma velhinha cujo sonho era ter na sala de sua casa de pau-a-pique o quadro dela com o marido, já falecido. Mas não podia, não tinha posses para tanto. A situação dela me incomodou a acabei abrindo mão das minhas muito pequenas comissões para dar a ela, de presente, a realização de seu sonho.

Na época não achava, mas os quadros eram terríveis. Disso bem me lembro porque meus pais, talvez enternecidos com o meu esforço e para me agradar, compraram de mim um quadro. O Coelho mandou a foto deles para o Rio e, um mês depois, levei para casa o serviço encomendado. Talvez por brincadeira meu pai pendurou o quadro na parede. Anos depois revi o quadro e pareceu-me que meus pais haviam sido fotografados depois de mortos, tal o aspecto que tinham em suas fotos colorizadas.

Não trabalhei muito tempo para o Coelho. Na última vez que o vi foi para entregar a ele o material de venda. Na ocasião almocei com ele e sua mulher no amplo salão de uma velha casa onde temporariamente se abrigavam, fazendo um hiato em suas residências em pensões. O ambiente era de dolorosa simplicidade e, certamente, me serviram algo muito especial que não fazia parte de sua pobre rotina alimentar.

Lembrei-me do Coelho e seus quadros pintados ao ler hoje, no jornal “O Estado de São Paulo” que o alemão Titus Riedl e o britânico Martin Parr lançam livro e mostram em galeria de Nova York a arte dos bonequeiros do Nordeste, que percorrem a região colorizando fotos de pessoas simples – vivas e mortas. A matéria é assinada pelo jornalista Antônio Gonçalves Filho que destaca a transformação do negativo da vida de pessoas simples em imagens que as ajudam a suportar a própria história. O livro dos dois autores se chama “Retratos Pintados” e foi editado pela Nasraeli Press. Em inglês, ao custo de U$ 60.

Duas observações: jamais me passou pela cabeça que o Coelho fosse um “bonequeiro”; ao meu tempo de “bonequeiro auxiliar” - e mesmo mais tarde – não atinei que estaria prestando um serviço às pessoas simples, “ajudando-as a suportar a própria história”. Isso me conforta e, de certa forma, funciona como ajuste de contas com minha tardia impressão de que, ao invés de ajuda, o que havia era a exploração de gente simples com obras da pior qualidade.