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Morrer em paz

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Ferreira Gullar pediu à mulher que o deixasse partir em paz. Que não o submetessem a procedimentos para prolongar a vida. Queria evitar o sofrimento inútil, morrer com dignidade.

Por razões profissionais estive presente no momento da morte de muita gente. Ao lado do leito vi de perto o último suspiro de pessoas cuja vida não se prolongaria dadas suas condições de saúde. Nem todas morreram em paz. Muitas delas não queriam morrer.

Suponho que a morte em paz exija desapego à vida pelo menos no curto período que antecede o fim. Talvez tudo se passe ao ritmo de missão cumprida. Ou ao simples cansaço de tudo, aceitando-se a morte como epílogo ao que quer que seja.

Ainda hoje, passados tantos anos, impressiona-me a morte de minha mãe.  Esquálida, consumida pela doença, restrita ao leito no qual as feridas pelo corpo a impediam de acomodar-se, sofrendo, ainda assim agarrava-se à vida e ao mundo do qual não queria se despedir. Quando já não havia mais o que fazer, quando todo tratamento revelou-se ineficaz, parecia-nos que ela se recusava a partir. Constrangidos pelo sofrimento dela tornáramo-nos espectadores de uma peça de duração incerta cujo fim, entretanto, era previsto. Mas, a situação se prolongava demais.

A circunstância da morte de minha mãe deu-se de modo imprevisto. Certa noite abordou-nos uma velha senhora que, segundo disse, costumava visitar leitos de pessoas muito doentes para rezar por elas. Ao ver a minha mãe essa senhora nos disse que enquanto ficássemos ao lado de dela não morreria porque não se desligaria dos filhos. Ora, era uma explicação inusitada, difícil de acreditar. Em verdade não deixávamos a mãe nunca sozinha, havia sempre um de nós ao lado do leito. Mas acreditar em que se saíssemos ela morreria?

Em primeiro lugar levantava-se uma questão. Afinal, queríamos que ela morresse? De minha parte confesso que sim. Apesar da dor da perda parecia-me egoísmo sustentar situação na qual minha mãe sofria tanto, sem qualquer perspectiva de melhora. Enfim, também cansados e atônitos diante de situação tão difícil, decidimos sair do hospital para passar a madrugada em casa.

Creio que mal tivemos tempo de chegar à casa. Soubemos que, pouco depois que saímos, minha mãe enfim faleceu.

Tempos depois tive que retornar ao hospital em busca de documentos e perguntei sobre aquela senhora que nas madrugadas visitava os doentes terminais para orar por eles.  Estranhamente ninguém soube dizer nada sobre ela. Pessoas que há muito trabalhavam no setor em que minha mãe estivera internada me garantiram jamais ter passado por lá alguém que visitasse e orasse pelos pacientes moribundos.

Escrito por Ayrton Marcondes

6 dezembro, 2016 às 1:08 pm

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