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“Verão” de J. M. Coetzee

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“Verão”, terceiro livro da trilogia biográfica de J. M. Coetzee é um livro de um escritor sobre si mesmo. À primeira vista a afirmação anterior parece redundante dado que não existe outro significado para uma autobiografia. Entretanto, não se tem, em “Verão”, uma análise da obra do escritor, desenvolvendo-se a biografia em torno de um período da vida dele, por volta de 1970, quando ainda não se tornara famoso.

A sensação provocada pelo livro de Coetzee é a de que, a seu modo, o escritor se explica, desnudando-se o homem que está por trás do grande escritor, se ficcionalmente ou não isso realmente não importa. O que vale é a dicotomia entre o homem que publica e se torna famoso e alguém de quem não se espera quase nada tal a sua inaptidão geral para todas as coisas. É por ter-se tornado importante demais - Coetzee recebeu o Prêmio Nobel em 2003 – e pessoalmente não se ajustar à figura pública que talvez devesse ser que o escritor digladia-se com suas memórias nas quais revela-se sempre inapto para relacionamentos, frio, confuso, admitindo que chega  a ser visto como arrogante por outras pessoas.

Em “Verão” chama atenção a técnica narrativa utilizada. Os textos, aparentemente descolados uns dos outros, ligam-se num denominador comum que é a personalidade do escritor que não se poupa através das vozes de pessoas que o conheceram. A essas pessoas – cinco no todo – recorre Vincent, o biógrafo, entrevistando-as e buscando em seus discursos histórias e impressões sobre o escritor. São vozes nem sempre coincidentes que, entretanto, se somam quando o assunto é dirigido para aspectos da personalidade do escritor sempre tomado com um ser de espécie invulgar, utópico, confuso, inadaptado e até mesmo inesperado em seu modo de agir. No mais, o livro começa e termina com anotações de Coetzee feitas na época de interesse do biógrafo. Tais anotações são textos breves seguidos de sugestões para serem desenvolvidas posteriormente.

Ao tempo da realização da biografia Coetzee já está morto fato que reduz o espaço investigativo de Vincent a entrevistas e consulta de anotações deixadas pelo escritor. Dentro desse contexto ressaltam-se as relações de Coetzee com sua família, em especial com seu pai, e, principalmente com a África do Sul na época do apartheid. Coetzee é um africânder – descendente de calvinistas que se estabeleceram na África do Sul - e a ele se aplica aquilo que entre nós Sergio Buarque de Holanda caracterizou com “um desterrado em sua própria terra”. De fato, é muita clara a consciência de Coetzee de que tinha um direito abstrato de estar em sua própria terra natal porque a presença dele baseava-se num crime, a conquista colonial. Esse modo de ver colocava o escritor numa posição de transitoriedade em seu país. Embora profundamente consciente da situação social – a biografia escrita por Vincent é um mergulho no contexto social do apartheid e suas terríveis consequências – Coetzee em nenhum momento se mostra engajado em qualquer das vertentes conflitantes. Para ele, segundo uma das entrevistadas, a política é sintoma de nosso estado decaído, daí não interessar a libertação nacional da África do Sul.

Mas tudo isso é muito pouco em relação a uma obra que convida à reflexão. No texto alinhavado por Coetzee pressente-se a todo instante o perfil do grande escritor, um dos maiores de nosso tempo. Além disso, pode-se dizer que “Verão” fila-se àquela que parece ser a tendência dominante do romance atual, qual seja a do enredo autobiográfico. No caso de  “Verão” esse modo de romancear se faz com despojamento e simplicidade linguística que em nenhum momento confunde-se com autocomiseração.

“Verão” de J.M. Coetzee é uma publicação Companhia das Letras e pode ser encontrado nas livrarias.