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Esclerose

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Consta que na velhice tem-se boa memória de fatos passados e péssima para os mais recentes. O sujeito se lembra de coisas acontecidas cinquenta anos antes, com detalhes. Por outro lado, mostra-se incapaz de dizer o que aconteceu a ele na véspera.

Para mim a memória do passado distante  a cada dia se revela mais cristalina. Por sorte, também sou capaz de me lembrar de acontecimentos recentes. A ver até quando o previlégio irá durar.

O fato é que, sabe-se lá porque, coisas há muito esquecidas têm retornado com grande clareza. É como se um interruptor fosse acionado na memória, devolvendo pessoas e situações que supunha perdidas. Foi assim, por exemplo, que ontem recebi a visita de um tio do meu pai, falecido na década de 70 do século passado.

Era um sujeito magro, oriundo do Sul de Minas Gerais. Crescido em fazendas o tio sabia tudo sobre cavalos, vacas, porcos etc. Não eram a ele estranhas as técnicas empregadas na lavoura de vários produtos agrícolas. Nunca se deu bem com o sobrinho - meu pai - com quem não comungava das mesmas posições em política.

Ficaria horas rememorandoa episódios da vida do tio, aliás excelente contador de histórias. Entretanto, sigo ao momento da vida dele que me foi devolvido, repentinamente, pela memória.

Pois. Eu o revejo em seus últimos dias, recolhido a um leito hospitalar. Cercavam-no a mulher, a filha e uma irmã que viera do Rio ao receber notícia sobre o estado do paciente.

Lembro-me de que, certa noite, fui ao hospital para visitar o parente. Encontrei-o inconsciente e com diagnóstico de que já não mais se recuperaria. Mas, um hiato. É preciso rebombinar o filme para que se reveja a cena que me foi devolvida pela memória. Lá estou, um sujeito ainda moço, seguindo pelo corredor do hospital até chegar ao quarto onde o tio estava internado. Abro a porta, entro. A mulher do tio e a filha dele me saúdam. Sobre o leito o tio agoniza. Mas, no chão, debaixo da cama onde se encontra o tio, um homem dorme - e ronca. Cena inesperada, absurda. Aquele sujeito deitado no chão é o genro do tio. Na sua sem cerimônia, certamente cansado, decidiu-se por descansar os ossos ali mesmo, sob o leito do moribundo.

O tio viria a falecer dois dias depois. Fui ao cemitério, acompanhando o enterro. Ao lado da cova o genro parecia muito saudável. Dormira muito bem naqueles dias, no hospital.

Ainda agora revejo a face do homem que dorme debaixo do leito onde o sogro agoniza. O movimento de seus lábios a expulsar o ar, enquanto ronca, impressiona. Existe um erro de composição nessa cena exdrúxula. A vida que ressona não combina com a morte ali presente. O fato é que minha memória não consegue compor a face do tio naquele instante. Não me lembro dele. Ficou- me o genro gordo, dormindo.  No chão.

Escrito por Ayrton Marcondes

25 maio, 2018 às 9:04 pm

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