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Keep Walking

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É bom avisar logo: há quem goste. Mas, nem todos.

Então: você tem um amigo no trabalho, o cara é sangue bom, estreitam-se os laços. Você não conhece a mulher dele, nem ele a sua. Chega o dia em que ele convida você e sua mulher para a casa dele, bate-papo de sábado à noite.

Vocês vão. Como eles serão? No trajeto a conversa entre você e sua mulher gira em torno de coisas corriqueiras, os filhos que ficaram com a avó e, vez por outra, uma ponta de curiosidade sobre o casal que visitarão.

Você estaciona o carro, está sóbrio, meio cansado da semana estafante, na verdade resolveu visitar o amigo mais para que a sua mulher saísse um pouco de casa. No elevador vocês não dizem nada, descem no sétimo andar, apertam a campainha do 716 e lá está o seu amigo, abrindo a porta, com um sorriso enorme grudado na face. Atrás dele a mulher, uma loirinha simpática que sorri confiante e logo abraça a sua mulher para que ela se sinta em casa.

Os quatro estão sentados na sala esperando pintar um assunto, na falta de algum você fala algo sobre o serviço. Não demora a que as duas mulheres se levantem para ir à cozinha enquanto você e o seu amigo conversam.

Minutos depois as duas retornam trazendo bandejas com salgadinhos e é a vez do seu amigo se levantar perguntando o que você quer beber, ele tem Johnny Walker, é bom tomar agora porque hoje mesmo chegou uma notícia da Escócia avisando que a fábrica desse uísque vai ser fechada.

O seu amigo entra na cozinha para pegar copos e gelo enquanto você sai do sofá e vai até a janela para dar uma olhada no bairro. Enquanto espera pelo uísque vê carros passando na rua e observa as janelas dos outros prédios com as luzes acesas. Tem gente lá dentro, para além janelas, gente como nós, pessoas que se visitam num sábado à noite para preencher o tempo procurando identidades, talvez amizades duradouras. Você está filosofando sobre esse fato quando ouve o barulho do gelo batendo nos copos, é o seu amigo que volta com o mesmo sorriso de antes, repetindo que é bom aproveitar porque a fábrica do Johnny Walker está para fechar.

Agora estão todos sentados novamente, as mulheres tomam cerveja preta, vocês Johnny Walker. A bebida solta as línguas, em pouco a conversa esquenta. De repente o seu amigo fica em pé, faz cara de sério e avisa que vai contar uma piada. Antes que ele conte, a loirinha diz que o marido é um ótimo contador de piadas.

- É bom que vocês se preparem, acrescenta.

Então o seu amigo diz que a piada é nova e você repara que a mulher dele já está rindo mesmo antes dele começar.

A piada é de português, o rapaz conta com detalhes imitando o jeito de falar dos portugueses. Você acha a piada meio sem graça, mas ri por obrigação enquanto a loirinha se escangalha de tanto rir. A sua mulher também ri, mas não muito, ela é meio fechada mesmo e você conclui que para o jeito dela a quantidade de riso foi até razoável.

Com tantas risadas a alegria se instala e o seu amigo fica animado iniciando-se uma longa sessão de piadas. A partir da quarta ou quinta piada você começa a achar a coisa toda meio insuportável, mas continua rindo com jeito meio desengonçado. Na décima você descobre um jeito de parar a sessão, levantando-se para ir ao banheiro.

Você se olha no espelho e pergunta-se sobre o que está fazendo ali numa noite de sábado. Depois lava a cara com água fria e pondera que talvez a sua mulher tenha razão, você é um grande chato, não se afina com ninguém, se depender de você fica-se sempre em casa, vendo filmes no DVD ou partidas de futebol.

Quando sai do banheiro lá está o seu colega de trabalho - você já não pensa nele como amigo -com a garrafa de uísque na mão, repetindo que é bom tomar agora porque a fábrica do Johnny Walker vai fechar na Escócia, houve até uma passeata dos escoceses protestando contra o fechamento.

Você decide tomar mais, afinal a bebida pode ajudar numa situação dessas. É quando percebe que as duas mulheres já começam a se entender melhor, estão falando baixinho, mulheres são assim, não tem jeito. Elas conversam animadamente, agora o colega da empresa acaba de colocar um CD de uma dupla sertaneja para tocar e a loirinha grita que ama essa música, perguntando se vocês também gostam.

A coisa está nesse pé quando a loirinha tem a idéia genial de convidar todos para uma partida de buraco. Você tenta protestar, vai dizer que está na hora de ir embora, mas é tarde, os três já decidiram, você está sozinho, a sua mulher acaba de passar para o lado deles.

O passo seguinte é uma interminável sequência de partidas de buraco, vez ou outra você e sua mulher batem, mas os donos da casa são bons e vão ganhando com os pontos que são marcados num caderninho. A certa altura a sua mulher diz que eles estão ganhando porque jogam no campo deles, quando forem lá na casa de vocês para pagar a visita o resultado será diferente. Imediatamente você decide se livrar de todo e qualquer baralho que tiver em casa, fará isso logo que chegar para não correr o risco de se esquecer.

Lá pelas três da madrugada você convida pela décima vez a sua mulher para ir embora e ela jura que agora será a última partida. Quando termina, a loirinha já está se preparando para embaralhar, mas você se levanta, Seguem-se vários ohs e apelos para mais uma última: não adianta porque você precisa dormir, está se despedindo.

Antes de você sair o seu colega convida para um último gole de uísque porque a fábrica do Johnny Walker vai fechar e é preciso aproveitar. Você agradece, puxa a sua mulher pelo braço e se despede.

Você está no elevador quando a sua mulher olha para você e diz, demonstrando um pouco de pena:

- A gente podia ter ficado mais. Você é mesmo um chato, não se afina com ninguém.

Você não responde. No caminho, voltando para casa, você apenas consegue sorrir, repetindo para si mesmo:

- Keep walking.

Escrito por Ayrton Marcondes

5 setembro, 2009 às 9:01 am

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