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Simplesmente vivendo

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Numa das últimas conversas que tive com uma senhora a quem conheci disse-me ela:

- Passei a maior parte da minha vida simplesmente vivendo.

Na ocasião a doença que a levaria estava em fase avançada. Otimista incorrigível a senhora falava-me de planos para o futuro em tom de débito para com um passado pobre de realizações. Ela precisava porque precisava colocar em prática coisas importantes que negligenciara, talvez por falta de estímulo e oportunidade, talvez por descaso ou, ainda, pura acomodação.

Impressionou-me que a dívida com o passado se apresentasse a ela com tal força na altura da vida em que estava. Mas, afinal, que dívida? Perguntei isso e, de novo, não obtive uma resposta clara, como se o delicado equilíbrio entre realizações e coisas deixadas por fazer tivesse se rompido nalgum ponto, a partir daí com imensa vantagem do que não foi feito. O fato é que à senhora pesava uma vida exatamente comum, daquelas em que uma jovem bonita sai das mãos dos pais para a do marido e o restante se confunde numa sucessão de dias mais ou menos enevoados e iguais, nos quais os cuidados com os filhos e a casa tomaram quase todo o tempo.

Entretanto, essa senhora não tinha razões para reclamar. Jamais conhecera a pobreza e recebera excelente formação em bom colégio da capital. Chegara a cursar faculdade em uma área que não lhe dizia respeito, erro talvez imperdoável, mas admissível. Terminara o curso superior por insistência do pai que se negava a vê-la sem o recurso de um diploma que, afinal, poderia vir a ter utilidade no futuro. Depois disso casara-se com um colega da faculdade com quem tivera filhos e uma vida, senão rica, pontuada por fartura, viagens ocasionais etc. Mas, pelo visto, não fora feliz, anulara-se no cuidado aos outros, entregara-se ao mundo das obrigações e acompanhara o sucesso do marido, bom companheiro e excelente pai.

Pelo que entendi a senhora de quem falo passou a vida simplesmente vivendo, fazendo coisas, cumprindo a rotina determinada pelas circunstâncias de um mundo possível. Mas, que não se atribua a ela rancor ou a insatisfação dos inconformados. Ao contrário, era ela grata à vida que teve embora ciente de que outro poderia ter sido o seu caminho. Enfim, ela não foi, de modo algum, uma mulher infeliz. Gostava de arte, o cinema era uma de suas maiores preferências e foi leitora de Jane Austen com cuja obra muito se identificava talvez porque visse em si mesma uma personagem que adquirira talentos para utilizá-los em ambiente doméstico.

A senhora de quem falo morreu na semana passada. Deixa saudades.

Escrito por Ayrton Marcondes

22 janeiro, 2011 às 5:47 pm

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