2015 junho at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para junho, 2015

Além do palco

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O que se vê no dia-a-dia é o espetáculo que se desenrola ao redor. Peça escrita com finalidade de tornar os espectadores crédulos e confiantes. Você trabalha, diverte-se quando pode, fornica às vezes, sustenta sua família etc. Ainda bem que sua vida depende de um sistema confiável no qual as regras do jogo são garantidas e o bem-estar comum é preservado. Para produzir bem você precisa acreditar nisso. Confiar é a palavra mágica. Daí que legisladores, autoridades e gente que manda se empenhem em produzir contextos nos quais o cidadão tenha a ilusão de que tudo vai bem, a vida caminha.

De repente a falha. Os organizadores do espetáculo erram no ponto. O pano de fundo rasga-se e os espectadores passam a ver o que se passa além do palco. Peças de montagem antes ocultas surgem diante de olhos estarrecidos. A grande farsa é descoberta. Revela-se que as regras que comandam a sua vida são diferentes das seguidas pelos organizadores do mundo. Falcatruas emergem e chegam à luz. Desvios de somas fantásticas de dinheiro, incomparáveis com o que você consegue à custa de muito suor. Então o mundo roda de cabeça para baixo. O sistema no qual você confia é falso. Suas convicções sobre certo e errado embaralham-se. Em meio à descoberta do banditismo geral o homem comum sente-se atordoado. O mal vence o bem e ponto final.

Mensalão, Petrolão, escândalo da FIFA… Onde fica o homem comum em meio a esse turbilhão de banditismo engravatado que espolia a sociedade e a fere de morte? Mas é preciso acreditar em alguma coisa porque senão a vida perde o sentido. A crise será temporária, não? O homem é um ser bom e tudo tem remédio, não?

Assim correm os dias.

Escrito por Ayrton Marcondes

9 junho, 2015 às 12:54 pm

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Alpinismo

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Acordo assustado. No sonho interrompido sou um alpinista em apuros. Abaixo de mim o precipício do qual tento escapar. Acima o pico distante. Minhas mãos doem, meus pés apóiam-se com dificuldade. A corda que envolve a minha cintura está bamba. Penso na minha vida nesses últimos momentos. Arrependo-me de ter-me metido nessa aventura sem saída da qual não escaparei. Tento um movimento e meus pés patinam nas beiradas. Respiro profundamente, ainda há vida e esperança. Mas o movimento seguinte é fatal: de repente desgarro-me de tudo o que me pode segurar. Começa a queda. O frio na barriga. O corpo descendo em velocidade crescente em direção ao nada. Não chego ao fim. Acordo. Sento-me na cama e tateio o criado em busca de segurança. Em pouco restitui-se a certeza do pesadelo. Demoro a adormecer. As imagens vívidas do desastre custam a desaparecer. Mas, por que sonho assim se nunca pratiquei alpinismo? Existirá na minha memória algum sinal de passado remoto que revive enquanto durmo? Será verdade que existem outras vidas e memórias do que fomos persistem e podem retornar?

Nem sempre acontece-me escalar montanhas. Há ocasiões em que me surpreendo em prédios altíssimos justamente no momento em que me falta o equilíbrio e a queda é iminente. Em outras ocasiões só me resta atirar-me do alto, trocando a vida por algo que seria ainda pior. No mundo dos sonhos temos vidas paralelas, dentro de outras realidades. Deixamo- nos de ser fisicamente e assumimos a essência que enfrenta situações novas e inesparadas.

De modo que tenho horror à grandes alturas. Daí que me parece louca e admirável a prática de alpinismo. Acompanho com temor as aventuras dessa turma que se arrisca na escalada dos picos mais altos da Terra, muitos deles perdendo-se, alguns morrendo. O instinto governa os atos desses aventureiros que se arriscam, encontrando prazer na superação de dificuldades tantas vezes intransponíveis. Ventos gélidos, avalanches, trilhas cobertas pela neve, precipícios, meu Deus!

Hoje mesmo130 alpinistas estão isolados no Monte Kinabalu em consequência de um terremoto que atingiu a ilha de Bornéu, na Malásia. Trata-se de uma das montanhas mais altas da Ásia que atrai grande número de alpinistas. Alguns alpinistas já conseguiram descer, mas a maioria continua isolada.

Situação inimaginável como a dos meus sonhos.  Esporte perigoso, difícil, cheio de riscos.   Mas, que fazer se é da natureza animal do homem a força que o leva a enfrentar desafios na ânsia de vencê-los?

Brasileiros

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No tempo em que a Argentina era ” A Argentina” os argentinos faziam jus à fama de serem arrogantes e insuportáveis. Argentino é um italiano que fala espanhol e pensa que é britânico - diz-se. Fato é que povos dos países vizinhos ainda hoje não devotam grande simpatia por eles. Há 20 anos participei de um city tour em Los Angeles. No ônibus só argentinos que, além de me ignorarem, viraram para os lados quando eu lhes dirigia a palavra. Um menino não escondeu a repulsa ao me olhar e perguntou ao pai: é brasileiro?

Mas, o tempo passa, o tempo voa. Amo Buenos Aires onde sou muito bem tratado todas as vezes que apareço por lá. E não são poucas. Gente boa esses argentinos, solícitos etc e tal.

E os brasileiros? Ah, os brasileiros. Verdade que não dá para caracterizar bem “o brasileiro” dado que os tais mais de 200 milhões espalham-se num vasto território e atendem a peculiaridades regionais. De que a fama no exterior não é boa todo mundo sabe. Acham que vestimos penas e usamos arcos e flexas. País das putas e do futebol. Está mudando, mas há quem contribua para a fama ruim.

Se você estiver no exterior a coIsa mais fácil do mundo é reconhecer a presença de brasileiros. Sabem aquele lugar onde todo mundo está falando baixo e entram pessoas quase gritando, na maior intimidade? Então, são brasileiros. Um rapaz me contou estar numa passagem de ano novo num bar em Sidney, Austrália. Na meia-noite as pessoas se levantaram, alegres, cumprimentaram-se, ergueram taças, brindaram. De repente, uma convulsão: rapazes e moças em pé sobre uma grande mesa, sapateando para horror dos australianos. Brasileiros.

Aconteceu num belo restaurante de Montevideo. Estávamos já à mesa, pessoas jantando e conversando baixo de modo que em conjunto as vozes eram pouco mais que um murmúrio. Entretanto, numa das mesas havia um sujeito, acompanhado por duas moças. De cada cinco palavras que ele proferia, seis eram palavrões. Realizava-se ali um festival de porra, pauta-que-o-pariu, filho-da-pauta e outros impropérios, ditos em voz alta durante conversa amigável. Se o tipo ouvia algo que o surpreendia logo partia para o pauta-que… e emendava com os porra e por aí seguia em frente. Isso para desespero dos presentes, todos eles uruguaios. Até que uma senhora se moveu, dirigiu-se ao idiota e o mandou calar a boca. Ele ainda tentou protestar. Ela imperativa. Ficou nisso.

A melhor coisa que talvez tenhamos, nós os brasileiros, é ser expansivos. Mas há que se cuidar dos níveis de expansividade. Tem hora, gente boa, que o jeito é se mancar.