2014 outubro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para outubro, 2014

A lógica dos debates

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Com quem está a verdade? Se o que nos interessa é conhecer a verdade fica-se em situação desconcertante quando declarações diametralmente opostas querem-se verdadeiras. Tomando-se a verdade como aquilo que é correto, sincero e dentro da realidade apresentada conclui-se que no caso das opiniões diametralmente opostas apenas uma delas corresponde ao que é verdadeiro. Será sempre assim?

Quem assistiu ao debate entre Guido Mantega e Armínio Fraga pode presenciar visões opostas sobre a conjuntura econômica de momento. Desde já encareça-se que ambos mostraram certeza inabalável de estarem em acordo com a verdade, ou seja, nenhum dos dois mentiria.

Para Mantega, atual Ministro da Fazenda, a economia do país enfrenta dificuldades devido à crise externa. No cenário mundial as economias estão em retração e o Brasil, apesar disso, cresce, embora em ritmo lento, mas seguro. Mantega critica os relatórios do FMI e posionamentos que dão conta da paralisação econômica do país.

Armínio Fraga, futuro Ministro da Fazenda caso Aécio Neves se torne presidente, afirma que a crise econômica mundial aconteceu em 2009. A elevação da inflação, o PIB baixo e a desaceleração da economia se devem a fatores internos.

Resumidamente, nos dois parágrafos anteriores  tem-se uma rápida visão das posições defendidas pelos dois debatedores. Mas, afinal, quem fala a verdade? Será que Mantega diz o que diz para defender o governo e dar respaldo à reeleição de Dilma? Será que Armínio visa apenas mostrar os erros do governo e trabalha apenas pela vitória de Aécio?

Se nós basearmos no que entidades especializadas estrangeiras dizem, nas opiniões de comentaristas brasileiros, naquilo que os jornais repetem diariamente, na desaceleração visível da economia, no PIB baixo, na escalada da inflação, enfim no que se verifica no dia-a-dia do país a verdade está do lado de Armínio. Ainda assim, eu não conseguiria colocar Mantega no rol dos que mentem. De fato, impressiona a convicção com que o ministro defende seu ponto de vista. O ministro não mente, o ministro no máximo está enganado. De modo que nesse caso não se trata de um debate no qual está em jogo a dualidade verdade X mentira.

Pena que de posições tão antagônicas dependa o prato de comida de tanta gente.

Cabeça de suicida

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Estima-se que no Brasil 25 pessoas se suicidem por dia. Verifica-se que tem havido aumento da frequência de suicídios entre os jovens. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde) 1 milhão de pessoas suicidam-se a cada ano em todo o mundo.

Face a tais preocupantes números em muitos países programas de saúde pública incluem medidas de prevenção de suicídios. No Brasil existe um manual dirigido a profissionais de saúde: Prevenção do Suicídio - Manual dirigido a profissionais das equipes de saúde mental.  Nesse manual apontam-se os fatores de risco em relação a suicídios: transtornos mentais, sociodemográficos,  psicológicos e condições clínicas incapacitantes. O conteúdo do manual relaciona-se à análise pormenorizada desses fatores.

Acho que muita gente já teve proximidade com algum caso de suicídio. Em meu trabalho tive um colega que certa vez me contou uma história interessante para justificar a sua rouquidão. Contou-me ele que fazia uma limpeza no ralo da cozinha de sua casa e colocou sobre a pia um copo com soda que iria usar como desentupidor. Aconteceu a ele distrair-se e ingerir o conteúdo do copo num momento em que teve sede. Obviamente, ele não morreu dado estar ao meu lado narrando a tragédia pela qual passou. A soda corroeu parte de alguns órgãos internos, mas o meu colega conseguiu se salvar após muito sofrimento.

Quando ouvi essa história estava na sala um outro colega que permaneceu em silêncio. Depois que o homem que bebera soda se foi o outro colega me disse: ele sempre conta essa história, mas na verdade tentou se suicidar.

Anos mais tarde vim a saber que o homem que bebera soda finalmente dera cabo de sua vida metendo uma bala na cabeça. Pensando bem o suicídio dele era esperado dado que nunca se recuperou da separação da mulher e do distanciamento dos filhos. Não sei dizer se em algum momento houve algum tipo de socorro psicológico a esse homem que ficou de mal com a vida e jamais se harmonizou com ela depois disso.

Tive um grande amigo como qual convivi durante alguns anos sem saber do passado dele. Era ele procurado por atos que cometera contra a ditadura militar no país. Só depois de 1985, com a abertura política e redemocratização do país vim a saber que ele vivera com o nome trocado etc. Depois disso passei alguns anos sem vê-lo até que recebi a notícia de que ele havia se suicidado. Apaixonara-se por uma moça que o rejeitara e cometera a loucura de esperá-la num estacionamento onde a matara e depois se suicidara.

Não sei o que se passa na cabeça de um suicida no momento em que finalmente se decide ao ato estremo. Em relação ao amigo que se suicidou confesso que a par de ele ser um homem de ação jamais notei nele qualquer tendência ao suicídio. Era um homem culto e gostava das coisas boas da vida.

Hoje a “Folha de São Paulo” publica reportagem sobre uma mulher que foi surpreendida no momento em que ia se atirar do alto de um trecho da linha do metrô. Dois anjos a salvaram: um homem que parou o trânsito e se pôs a gritar para que ela não se atirasse e um segurança que conseguiu chegar a tempo para retirá-la do ponto onde se encontrava.

Um repórter presente no momento em que tudo ocorreu fotografou o episódio. Era uma mulher bem vestida e certamente desesperada. Que tipo de filme se passaria na cabeça dela no momento em que assomou a beirada dos trilhos do metrô e se dispôs a dar adeus a esse mundo?

Sob a pele

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“Sob a pele” é um filme do diretor britânico Jonathan Glazer no qual a alienígena Laura (Scarlett Johansson) ocupa-se da mítica missão de devorar homens. Não se sabe como ela veio parar na Terra. Tudo no filme se resume a assistir aos movimentos de Laura que dirige uma van, procurando pelas suas vítimas. A alienígena sempre escolhe homens solitários a quem seduz com sua beleza, levando-os até uma casa abandonada onde ela se desnuda, atraindo-os para a morte.

Assim, tudo parece ser muito simples. Em nenhum momento se mostram as tradicionais cenas de ação com lutas entre alienígenas portadores de armas sofisticadas e humanos. A arma utilizada por Laura é unicamente a sedução, a atração irresistível que exerce sobre homens que sucumbem aos seus encantos.

Eis aí um filme no qual os diálogos são escassos. Não são necessárias explicações para aquilo que o espectador pode entender apenas pelas imagens. Nem é preciso esclarecer as motivações da alienígena. Ela é assim e pronto. De onde veio e para onde vai, porque se dedica a devorar homens simplesmente não interessa. A lógica de alguém vindo do espaço certamente foge à compreensão dos humanos que ela vê através dos vidros fechados da van.

Com um roteiro simples, pouca ação e sem sobressaltos o filme atrai pela excepcional atuação de Scarlett Johansson. Não há como não se prender à beleza dessa mulher cujas formas desafiam o padrão exigido de magreza. Scarlett é uma verdadeira mulher, em carne e osso, sem a preocupação de sê-la. Sua prodigiosa nudez traz para a tela o encantamento da visão de uma fêmea em sua plenitude. Grande parte do filme se passa através do contato entre o espectador e o rosto da atriz no qual a beleza confunde porque protege uma devoradora de homens.

Se você procura um filme de ação não perca tempo com “Sob a pele”. Certamente a trama sem sobressaltos aparentes o deixará insatisfeito. Entretanto, eis aí um filme que dará o que pensar às pessoas que gostam de cinema. Eis aí uma produção diferente que por vezes se arrasta, mantendo-se em pé graças à presença deslumbrante da personagem alienígena. Aliás, uma alienígena que aos poucos começa a se aproximar dos seres humanos, talvez procurando entendê-los. É justamente quando Laura começa a experimentar coisas da Terra que tudo muda para ela. Afinal, os dedos que batem sobre a mesa tentando acompanhar o ritmo de uma música e a boca que não consegue engolir um pedaço de bolo não pertencem a um ser humano.

Laura é um ser no lugar errado, valendo-se de sua beleza exterior que camufla o alienígena que vive sob a sua pele. Essa contradição guiará o desfecho da trama encenada.

Deu no New york times

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Leio no NYT sobre o vazio deixado na vida dos pais quando os filhos saem de casa para cursar faculdades. O vazio deixado com a saída dos filhos mostra-se difícil de contornar. Famílias abastadas compram imóveis nas cidades em que os filhos estudam para passar pelo menos algum tempo por ano próximas a eles. Já em casa muita gente apela para a aquisição de animais que sempre emprestam algumas alegrias ao dia-a-dia.

Quando fui fazer o pré-vestibular hospedei-me durante alguns dias em casa de tios na capital. Desde logo me comprometi a sair logo de lá dado o peso no orçamento familiar que faria a presença de uma pessoa a mais. De fato, passados alguns dias eu arranjara um lugar temporário para ficar, mas meus tios de modo algum me deixaram sair. O que veio depois foi que acabei morando com eles por um período de cinco anos.

Quando já se aproximava o final de meu curso superior decidi que já passava da hora de me mudar. Mas, as coisas não se passaram facilmente. Ainda me lembro dos apelos de minha tia para que eu não me mudasse. A imagem dela subindo pela escada do sobrado onde morávamos para não me ver sair com as minhas tralhas é inesquecível.

A minha geração certamente foi muito diferente das mais recentes. Vim de uma época na qual os filhos cortavam os laços de dependência com os pais mais cedo. A vida era difícil, mas com boa formação profissional conseguia-se trabalho com certa facilidade. A carência de bons profissionais gerava razoáveis oportunidades. De modo que gente como eu e meus colegas nos desprendemos do cordão umbilical o mais depressa possível.

Não dá para generalizar, mas observa-se que hoje muitos filhos permanecem em casa de seus pais. Talvez pelos desarranjos da economia a vida em família se mostre mais interessante no sentido de enfrentar dificuldades. Conheço muita gente com filhos de mais de de trinta anos que ainda vivem com os pais.

Certamente o que desejamos para os nossos filhos é que tudo de melhor suceda a eles. Quando estão longe, logicamente nos preocupamos. Mas, cada um tem a sua vida e os desafios próprios a superar. Trata-se de uma ausência consentida da qual não podemos reclamar.

A eletrônica na vida das crianças

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Fico embasbacado quando vejo a familiaridade das crianças com equipamentos eletrônicos. Um sobrinho que ainda não fez três anos mostra-se habilidoso no trato com o iPad, controles remotos e máquinas fotográficas. Imagino que na mente dele o mundo seja um lugar acionado por botões através dos quais se possa conseguir aquilo que se deseja. O fato é que o menino é capaz de ficar parado diante da TV assistindo a um filme de animação, palpitando vez ou outra sobre aspectos da trama.

Mas, o menino a que me refiro não é gênio ou superdotado. Hoje em dia as crianças têm acesso precoce a equipamentos dado que a maioria dos pais não impõe a eles nenhuma restrição nesse sentido. Aliás, a ocupação das crianças com equipamentos torna-se até interessante na medida em que estando ocupadas elas proporcionam bons momentos de folga a seus pais.

Ao que se saiba até agora não existem dados concretos sobre efeitos da invasão tecnológica no mundo das crianças. Isso quer dizer que a pergunta sobre mudanças na personalidade de futuros adultos criados sob forte influência de eletrônicos permanece em aberto. De todo modo a atual situação é preocupante dado o fato de que as crianças de hoje estarem sujeitas a um imaginário que pode distanciá-las da realidade.

Não deixa de ser curioso o fato de que presidentes de empresas de tecnologia limitem o tempo que seus filhos podem dedicar a produtos e serviços eletrônicos que eles mesmo vendem. Sempre citado é o caso do falecido Steve Jobs que depois do lançamento do iPad declarou que seus filhos ainda não o haviam usado. Jobs confessou que ele e a mulher limitavam a tecnologia que seus filhos podiam usar em casa.

Muitos presidentes de empresas de tecnologia têm comportamento semelhante ao de Jobs. O medo de que se viciem em tecnologia e que tenham acesso a conteúdos prejudiciais figuram entre os motivos da imposição de limitações.

Não conheço em nosso país recomendações no sentido de evitar o uso excessivo de tecnologia entre os mais jovens. Ao contrário, hoje em dia boas escolas apontam entre seus diferenciais justamente o acesso de seus alunos a recursos tecnológicos avançados. E chega a ser irritante a constatação de que a cada dia mais e mais jovens perdem horas em redes sociais ou presas a contatos diretos através de aplicativos dos seus smartphones.

Obviamente não se está a falar sobre a necessidade de retrocesso, retorno às origens ou o que seja. A informática com a internet é uma ferramenta e tanto em vários sentidos, útil em todos os segmentos humanos. O que preocupa é o uso indiscriminado de meios eletrônicos por pessoas em fase de formação. Afinal, por que pessoas responsáveis por empresas de tecnologia limitam o uso de aparelhos eletrônicos pelos seus filhos? Obviamente, essas pessoas estão alertadas quanto a perigos que talvez nos escapem no dia-a-dia.

Divulgam-se as urnas

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Dias atrás ouvi pelo rádio as instruções aos eleitores em relação ao pleito de janeiro de 1947. Tantas eram os procedimentos que melhor seria tivessem publicado um manual. Imagino as filas de espera e as dificuldades dos eleitores de então para votar nos candidatos da preferência deles.

Hoje me levantei cedo e compareci à minha sessão eleitoral. Eram nove e pouco da manhã e eu era a única pessoa presente para declarar o meu voto. Não devo ter me demorado mais que um minuto na urna eletrônica. A escolha de deputados, senadores, governadores e presidente foi instantânea. Como dizia o Chico Anysio: é vapt-vupt. Bastava digitar os números que trazíamos decorados e rapidamente nos desfazíamos da obrigação.

Sempre me pergunto como seriam as eleições no país caso o voto não fosse obrigatório. Será mesmo que toda essa boa gente se daria ao trabalho de sair de casa, sacrificando algumas horas do lazer de domingo, para exercer a obrigação republicana? Pois, não creio. Aliás, me parece que caso o voto não fosse obrigatório seriam eliminadas algumas distorções observadas nos resultados eleitorais. Muita gente que vota apenas por obrigação e sem nenhuma convicção deixaria para lá a visita às urnas e talvez tivéssemos resultados mais sensíveis e coerentes com as necessidades do país.

A essa altura - começo da noite de domingo - já se divulgam os primeiros resultados dessas eleições. Imagino o nervosismo dos candidatos e de seus correligionários que, afobadamente, esperam pela vitória. Já se percebem algumas disparidades entre os prognósticos divulgados anteriormente pelos institutos de pesquisa e os resultados divulgados. Antes do fim da noite teremos uma visão mais ou menos completa do quadro de eleitos.

Enquanto isso fica esse vazio. Será mesmo que aqueles que serão eleitos se empenharão em melhorar o país? Será que finalmente haverá consenso sobre a gravidade do momento econômico e as perspectivas do tempo difícil que teremos à frente? Será que os políticos colocarão o interesse público acima dos interesses pessoais?

Infelizmente, as respostas a essas perguntas não são nada animadoras. Uma longa história de prevalência dos interesses de grupos e pessoais mina as expectativas quanto a tempos melhores. Em todo caso não se pode perder a esperança. Quem sabe desta vez estejamos no limiar de boas transformações.

O fim está próximo

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Alegrem-se: o fim está próximo. Em pouco tempo todo esse falatório, as marchas e contramarchas eleitorais farão parte do passado e poderemos dormir em paz. Alguém será eleito para o cargo de primeiro mandatário do país e sob os ombros desse alguém pesará a responsabilidade de reerguer a economia do país e melhorar a condição de vida de milhões de pessoas.

A gente não se dá conta de que hoje os brasileiros já passam da conta de 200 milhões de cabeças. Em 1970 éramos 70 milhões, veja-se como fomos operantes nessa coisa de gerar filhos. Pois entre esses mais de 200 milhões de homens, mulheres e crianças reina uma desigualdade social que levará décadas para ser melhorada, isso se os “alguéns” que ocuparem a presidência se derem ao trabalho de se preocupar com a situação.

Mas, o problema atual, o nosso problema, é a escolha do “alguém” da vez. Eis que dispomos de três opções. A primeira é a atual governante que pertence a um partido que de fato melhorou as condições de vida de muita gente, mas que se perdeu num mar de corrupção; a segunda é uma candidata sobre a qual pesam sérias dúvidas quanto aos procedimentos que terá caso venha a ser eleita; o terceiro é um ex-governador aprovado pelas chamadas classes médias e alta.

Não sei dizer quanto a você, mas comigo acontece ficar meio nervoso quando fico sozinho diante da urna. Até chegar lá me parece que nada daquilo tem importância. Mas, na hora de apertar o botão, a minha consciência pesa, a responsabilidade me cobra atitude coerente.

Nos últimos dias resultados de pesquisas são publicados a toda hora dando-nos conta das inclinações de momento do eleitorado. Temo dizer que talvez possamos ter alguma surpresa quando os votos forem apurados. Muita gente se verá em diálogo com a própria consciência na hora em que estiver junto da urna. Afinal, todo mundo sabe que o país precisa de ajustes.

Sobre o Nada

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Tem um sujeito, meu conhecido, que a toda vez que é perguntado sobre o que está acontecendo reponde:

- Nada.

Insisto:

- Nada mesmo?

- Nadinha.

Desde muito tomei a liberdade de chamá-lo de Nada. Quando me encontro com ele e o chamo de Nada ele apenas sorri. Mas, convenhamos, o Nada é um homem contido. Desses que se seguram ao limite para não externar emoções. De um ano para cá deixou crescer a barba, certamente para disfarçar o espanto diante da vida. Porque - é bom que se diga – não faz muito tempo a vida do Nada virou de cabeça para baixo. Uma série de acontecimentos infaustos abateu-se sobre ele, inexplicavelmente.

O Nada é dessas pessoas que nos fazem pensar se de fato existem a sorte e o azar. Se de fato algumas pessoas são azaradas, tanto que céus e infernos parecem se voltar contra elas, inexoravelmente.

Mas, a essa altura você estará se perguntando: afinal o que aconteceu a esse tal de Nada? Confesso que não sei detalhes e muita coisa sobre a cascata de má sorte do Nada me escapa. O pouco que soube foi através dele mesmo que certo dia, em fase de desespero, sentou-se comigo para uma cerveja e abriu o bico. Naquela ocasião falou-me ele pausadamente. O Nada mastigava cada frase que parecia sair de seu peito após ser gerada com imensa dor. Confessou-me a falta brutal que faziam a ele os filhos agora vivendo sob a tutela da mãe. A mãe. Justamente a mãe. Ela mesmo, aquele mulherão com quem se casara recusando-se a ouvir os conselhos dos amigos. O Nada deu a ela casa, cama, comida, carro importado de luxo, vida de rica como ela jamais teria vinda que era de berço pobre. Trabalhava ele dia e noite para manter o padrão, feliz por fazê-la feliz. Sempre ocupado, o Nada deixou-a passear várias vezes em Miami, levando dinheiro gordo na bolsa para comprar o desse na telha dela.

Isso durou? Ah, não.  Pois foi um sujeito do posto de gasolina que certo dia disse ao Nada que a mulher dele andava com o cara da academia, um personal trainer que ela havia contratado para manter a forma. O que se seguiu foi uma rápida investigação que deu o resultado esperado: ele e o tal personal eram amantes. Seguiu-se a perda da casa que estava no nome dela e até a descoberta de que o carrão já fora passado por ela ao personal. Aborrecido o Nada descuidou-se da empresa e o negócio afundou depressa. De repente dividas, processos etc. Como nenhuma desgraça parece não se dar por completa veio o acidente no qual o Nada se machucou e agora anda puxando por uma das pernas. Tem mais, mas chega.

Naquela noite em que o Nada me falou sobre a desgraça dele, vi um homem cansado da vida, talvez desejando colocar um ponto final no seu estágio entre os humanos. A certa altura, depois de um longo silêncio perguntei a ele:

- E sobre o futuro?

Ele se virou e com algum esforço respondeu:

- Nada.