2013 fevereiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para fevereiro, 2013

Ainda a renúncia

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A renúncia de Bento 16 domina o noticiário dos jornais. Páginas e páginas são escritas com toda sorte de considerações, as principais envolvendo as possíveis causas da renúncia e o que acontecerá à igreja daqui por diante. Num pronunciamento Bento 16 criticou a divisão da igreja e acenou para a hipocrisia entre membros do clero. Especialistas viram na fala do papa reforço aos comentários de que disputas internas o levaram a renunciar.

De todo modo esperam-se mudanças na igreja. Um cardeal brasileiro lembra que será difícil ao novo papa acomodar a doutrina católica aos reclamos dos fiéis tais como concordância com casamentos gays e uso de camisinhas, entre outros. Também se fala sobre a necessidade da igreja adaptar-se mais ao mundo de hoje, aceitando algumas novidades decorrentes do avanço da ciência.

O papa teria renunciado para ceder lugar a alguém com vitalidade de corpo e espírito para renovar a igreja. Nesse sentido surgem especulações sobre quem poderia ser o novo papa, como sempre sendo citados proeminências do clero oriundas de países fora da Europa. Reuniriam alguns deles potencial para mudar os rumos da igreja e reverter a perda de fiéis para religiões evangélicas que não param de crescer.

Como não poderia deixar de ser fica tudo no talvez. Sinceramente, não acredito em muitas mudanças. Contribui para esse modo de pensar conversa que tive há alguns anos com um padre na qual ele me disse coisas marcantes. Lembrou-me o padre de que a igreja de Jesus Cristo tem dois mil anos e resistiu a todos os modismos e heresias. A doutrina é maior que modos de ver e hábitos temporários que, no fim das contas, acabam passando. A doutrina não passa, ela é sempre a mesma porque divina e superior aos modos humano de governar o mundo e viver em sociedade. Enfim , a doutrina é soberana, fato que não se discute dentro da igreja - disse o padre.

Bento 16 pede a cardeais verdadeira renovação na igreja. Resta-nos esperar pelo conclave e observar o perfil do escolhido para governar a igreja. O assunto apaixona e a renúncia provoca verdadeiro tsunami no mundo porque surge como quebra inesperada das regras do jogo.

Bento 16 reapareceu em público para a missa da quarta-feira de cinzas e foi aplaudido e ovacionada pela multidão. De repente tornou-se possível vê-lo apenas como um homem, um senhor de  85 anos, cansado, mas claramente convicto do acerto da difícil decisão que tomou.

A renúnica do papa

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A renúncia do papa Bento 16 confunde a opinião por inesperada. Na cabeça do povo papas morrem, realiza-se o conclave e dele surge o substituto eleito pelos cardeais hábeis ao voto - é preciso ter menos de oitenta anos de idade para ter direito ao voto de escolha do novo papa. Mas, papas renunciam? E como ficam os fiéis para quem o papa é o substituto de Jesus na Terra?

Fui criado dentro da fé católica. Minha mãe me levava às missas aos domingos que eram celebradas em latim. Aliás, o latim era matéria ensinada nas escolas. Ainda hoje sou capaz de recitar as cinco declinações latinas com exemplos, conforme aprendi na escola pública. Valorizava-se o latim do qual o português é derivado. A coisa era séria. Hoje em dia estão saindo das faculdades professores de português que não têm aulas de gramática normativa durante o curso superior. Muitos preferem ensinar a língua falada ao invés da linguagem culta daí que os alunos deles enfrentarão dificuldades em se expressar corretamente. Agora imagine-se o que aconteceria se alguém propusesse a volta do latim…

O papa tem representação maior do que a teatralidade da posição confere a ele. Ele é o guia de milhões de pessoas em todo o mundo que professam a fé católica. Há na figura papal algo que sugere ligação entre mundos, um sentido de travessia desta para outra vida na qual as verdades da fé se confirmarão. Milhões e milhões de pessoas acreditam nisso daí a figura do papa ser emblemática num mundo onde a fé surge em socorro a tanta confusão, desigualdades e injustiças.

Pelo que não se pode fugir à pergunta: um homem investido em cargo de tão alta envergadura pode simplesmente renunciar? Se pode ou não isso parece não importar porque o fato é consumado: o papa renunciou. A notícia caiu como bomba não só nos meios católicos e terá reflexos, não se sabendo ainda de que extensão.

Por que Bento16 desistiu? Hipóteses são levantadas, valorizando-se a idade avançada do papa que teria saúde frágil, daí não estar apto ao comando da igreja em todo o mundo. Mas, logo esta hipótese foi desmentida por um alto membro do clero do Vaticano que veio a público para dizer que o papa está bem de saúde. Renunciou porque renunciou e é possível que o segredo da sua renúncia pertença só a ele.

Há quem veja na renúncia um gesto de grande humildade porque Bento 16 deixa o poder enorme que detém em suas mãos. Outros atribuem a renúncia a questões políticas derivadas de uma divisão do clero ocorrida pela divulgação de documentos secretos que vazaram no Vaticano.

Enfim, a renúncia do papa está dando o que falar e percebe-se alguma desorientação nos pronunciamentos. Ninguém quer se comprometer aventado hipóteses que talvez jamais venham a ser confirmadas. Mas, o mais difícil de compreender é como alguém que se tornou papa pode desistir de continuar a sê-lo. Não se trata de uma renúncia a cargo político: maior que isso é a ligação do cargo com aquilo que não se conhece, com o poder que emana de uma crença que existe há mais de dois mil anos, poder esse legado por Jesus a São Pedro e dele aos pósteros ao longo de vinte séculos.

Não é o caso de se dizer que vale esperar por alguma explicação porque ela certamente não virá. Um novo papa será eleito e a vida continuará. Se as coisas serão as mesmas na religião só o tempo responderá.

O pior pintor do mundo

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O “pior pintor do mundo” mora numa casa pequena onde se acumulam pilhas de seus quadros. Encontrei-o, por acaso, na rua e não houve como não aceitar o convite para visitar o atelier dele. Enquanto íamos para lá fiquei sabendo que o pintor tem agora 77 anos de idade e preocupa-se com o destino da sua obra após morrer. O fato é que nunca conseguiu reconhecimento e tem certeza de que a grandeza da sua pintura será, infelizmente, reconhecida após a morte. Identifica-se com outros artistas reconhecidos postumamente, embora não siba citar nenhum deles. Quando pergunto sobre um caso de reconhecimento póstumo ele diz que certamente os há, afinal o mundo é vasto, a história longa e muitos gênios terão passado despercebidos nas épocas que viveram.

O atelier do pintor apresenta distribuição confusa de obras, segundo ele ordenadas em acordo com as épocas em que foram produzidas. Ele me explica que há algum tempo organizou um caderno com textos explicativos sobre cada quadro, isso para o caso de vir a morrer subitamente. Não quer que seus quadros fiquem desamparados após sua morte porque se trata de obras importantes, cada uma delas merecendo descrição detalhada que cabe ao artista deixar à disposição dos pósteros. É, pois, a posteridade que preocupa ao pintor que nela aguarda a glória que faltou a ele em vida.

Vejo na parede uma reprodução de um quadro da fase cubista de Picasso e, antes que eu diga algo, o pintor se apressa em me explicar que o deixa ali para compará-lo com os seus trabalhos, desse modo mantendo a linha de suas produções. Finalmente, depois que observo muitas obras, ele me pergunta sobre o que achei delas e respondo que me agradam muito, afinal ali se reúne o trabalho de toda uma vida do artista.

Houve um tempo, no passado, em que o pintor lutou por ser reconhecido. Entretanto, aconteceu a ele um infortúnio qual seja a visita de um crítico importante trazido por um amigo para avaliar a sua produção. O diabo foi que o tal crítico ao final de suas observações negou-se a um comentário, despedindo-se sem uma única palavra sobre a obra do artista. Entretanto, quando saia o crítico disse ao amigo do pintor que jamais vira algo tão absurdo e sem valor. Acrescentou que na opinião dele aquilo era mesmo uma grande porcaria, sem valor e que o auto daqueles quadros certamente seria o “pior pintor do mundo” acaso chegasse a merecer a classificação como “pintor”.

Infelizmente, o crítico disse isso sem reparar que atrás de si havia uma janela na qual justamente estava o pintor que ouviu integralmente o teor da crítica. Depois disso o pintor retraiu-se, deixou de pintar, só voltando a trabalhar quando sentiu cicatrizarem-se as feridas que tinham se aberto em sua alma.

Que eu saiba o pintor jamais vendeu um de seus quadros dado o desinteresse de quem os viu. Quanto a mim que pouco sei de arte, posso afirmar que jamais penduraria ao alcance do meu olhar uma das obras do pintor. São de fato estranhas, sem nenhuma linha, senão péssimas. Entretanto, não posso deixar de pensar se esse homem não seria alguém a produzir obras que daqui a talvez mil anos venham a ser reconhecidas com a arte daquele momento. Caso isso venha a acontecer - e os quadros do pintor não tenham desaparecido - ele finalmente terá atingido a glória que tanto espera na posteridade.

Vida de rei

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Dizem que reis nunca morrem. Isso parece ser verdade pelo menos em relação às memórias que se guardam sobre eles. Justos ou tiranos não importa: a história delimita o período de um reinado e os fatos que marcaram a atuação dos reis. Monarcas da antiguidade até hoje despertam curiosidade, vejam-se os livros e filmes sobre o Império Romano.

A ficção não prescinde dos reis. Uns poucos serviram à inspiração de Shakespeare e seus nomes foram legados á posteridade em peças do grande dramaturgo. Um dos reis eternizados por Shakespeare foi Ricardo 3º (1452-1485) a quem o dramaturgo atribuiu as célebres palavras: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo.

Ricardo 3º foi morto na cidade inglesa de Leicester, na Batalha de Bosworth, por ocasião da Guerra das Rosas travada entre as famílias lancaster e York. Ricardo que tinha escoliose e é retratado por Shakespeare como corcunda de mau caráter foi enterrado num mosteiro onde hoje se localiza um estacionamento.  E eis que para comemoração geral acaba de ser encontrado o esqueleto do rei e divulga-se não haver qualquer dúvida de que se trata mesmo dos restos dele. Isso é comprovado pelo achado de ferimentos entre os quais uma ponta de lança nas costas, a escoliose de que era portador e a comparação do DNA do rei com o de um marceneiro seu descendente.

O achado dos restos mortais de Ricardo 3º corrobora a afirmação de que reis não morrem. De repente Ricardo 3º sai de sua tumba e aparece nas primeiras páginas de jornal e noticiários em todo o mundo. Compõe-se a partir do esqueleto a face que teria o rei de modo que passamos a conhecê-lo mais de perto. Note-se que estamos a falar de um homem desaparecido há mais de 500 anos, retornando do mndo medieval diretamente para as nossas observações.

Olho para a imagem daquela que seria a face de Ricardo 3º e me pergunto sobre que tipo de homem ele afinal terá sido. Terá Shakespeare nos passado dados confiáveis sobre este rei que morreu em batalha? E como seria se ele realmente revivesse a voltasse aos dias de hoje, que impressões teria o antigo rei deste louco mundo em que vivemos?

De todo modo o rei está integrado á nossa época. Destaque em comemorações e atração turística em Leicester o rei agora vive na “nuvem” de dados da internet podendo acessar-se fotos de seu esqueleto com um simples click de mouse. Não é pouco para alguém que morreu antes do Brasil ser descoberto e membro da realeza.

43 minutos

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19h37. O bimotor decola no aeroporto de Maringá. A bordo cinco pessoas, incluindo-se o piloto e a mulher dele que também viaja. O destino é São Paulo onde os passageiros desembarcarão. O tempo não está bom, chove, mas aviões são preparados para isso, não?

Ninguém se preocupa com a viagem. A vida que os espera depois do voo aguarda-os com compromissos, obrigações diárias das quais quase nunca se consegue escapar. É possível que os passageiros conversem entre si, talvez sobre os preparativos do casamento do jovem casal que acontecerá no meio do ano.

20h20! Nesse exato momento algo acontece. O bimotor avança em direção ao solo sem que o piloto possa impedir. Testemunhas dirão depois ter visto o avião rodopiando e caindo. O acidente revela-se fatal: todos os ocupantes do avião morrem.

O restante se resume às notícias. Divulga-se que o piloto havia se comunicado, avisando que faria pouso de emergência. O nome dos mortos no acidente aéreo é revelado. Especialistas e técnicos aventam hipóteses sobre a causa da tragédia: talvez o mau tempo, a chuva, com água entrando nos motores. A perícia começa a ser realizada e esperam-se respostas para o trágico momento em que cinco pessoas perderam suas vidas.

Viagens em aviões reúnem dois de nossos medos: altura e confinamento. Há quem não suporte um deles ou ambos, daí se recuse a viagens aéreas. Para vencer o medo de avião em geral nos socorremos com as estatísticas das quais se conclui ser muito maior o perigo no trânsito das cidades que o de voos.

Que seja. O que não dá para imaginar é o que se passa pela cabeça  de quem se vê dentro de um avião caindo. Talvez os poucos instantes que conduzem à morte sejam os mais longos de toda a vida. Vemos as cenas em filmes, mas certamente nem de longe se consegue representar o verdadeiro horror de alguém na rota irreversível do avião que cai.

Passaram-se 43 minutos desde o início do voo do bimotor ao instante em que caiu. Mais  dois minutos e o avião aterrissaria no aeroporto da cidade de Assis, interior paulista.

Grito de carnaval

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Tinha o Zé Carlos que, bêbado de cair, percorreu a única rua do lugar gritando, isso às três horas da manhã. Dia seguinte, em plena ressaca, Zé Carlos explicou:

- Era o “Grito de Carnaval”.

O “Grito” é comemoração realizada no fim de semana que antecede o começo do carnaval. Blocos de rua, trios elétricos e muita folia fazem parte das comemorações do “Grito”. O Zé Carlos fez o “Grito” sozinho, literalmente gritando. Terá acordado pessoas na vilazinha de uma só rua na qual viviam, na época, menos de quinhentas pessoas.

Leio nos jornais que sambistas depõem contra o carnaval de hoje. Carnaval comercial ao qual falta espontaneidade - dizem. Carnaval sem verdadeira alegria. Onde se perdeu a alegria do carnaval? Também dizem que no Rio as grandes escolas de samba estão sendo patrocinadas por empresas e até estrangeiros daí serem obrigadas a estampar logotipos, propagandas etc. Tudo isso porque os bicheiros que garantiam o dinheiro a rodo para as escolas estarem em baixa.

Por falar em “rodo” saudades do lança-perfume “Rodouro”, infalível nos velhos carnavais. Aqui e ali, no salão, disfarçando mal, aquele senhor com a “Rodouro”, injetando no lenço o líquido para ser aspirado. Um instante depois, aquela tontura, ida e volta ao inferno em segundos, consciência oscilante com repique de fuga imediata da realidade.

Do que todo mundo gostava, mesmo, era dos bailes de salão.  Há uma crônica do Mário de Andrade na qual ele conta sobre estar fantasiado num baile de máscaras em Santos. Carnaval da década de 20 ou 30, esse do Mário. Na vilazinha, aquela dos quase quinhentos habitantes, um mês antes do carnaval começavam os preparativos. Primeiro havia que se convencer o dono da padaria a ceder, por empréstimo a Momo, o salão que tinha nos fundos da casa dele para os bailes. Depois, combinar com os caras que tocavam algum instrumento para que se juntassem e tocassem nas quatro noites. Cobrava-se ingresso baratinho dos foliões e com esse dinheiro dava-se gorjeta ao baterista, ao cara do bumbo e até a um trombonista muito magro que vinha de São Paulo para ver a namorada. O dono da padaria tirava o dele, vendendo cerveja e a boa pinga. O resto era puro delírio porque bastava tocar a “Jardineira” e alguns sambas de costume para que a folia esquentasse.

Não sei como a folia acontece hoje em dia nas cidadezinhas dos interiores deste vasto Brasil. O tempo da ingenuidade é passado e o que se diz é que não se fazem bailes de salão como antigamente. Nem existe mais o Zé Carlos para dar início à folia do jeito dele.

Saudades dos velhos e bons carnavais. Quanta loucura, belas mulheres e farra a valer. Talvez o que se tenha perdido é um pouco do jeito e só isso porque carnaval é algo impresso no DNA tupiniquim, circula no sangue, daí ser imortal.

Viva a alegria.

Escrito por Ayrton Marcondes

4 fevereiro, 2013 às 12:17 pm

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Manhã de sol

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Manhã nítida, fachadas de tintas revigoradas. Dia bom para tudo porque nas ruas ainda desertas da primeira hora da manhã nada está fora do lugar..

De repente surge uma velha senhora saída talvez do nada, carregando uma sombrinha a conselho de seu senso de previdência porque não vai chover. Andando devagar ela desce da calçada e se dirige ao meio da rua, tão lenta e calmamente que me pergunto se de fato ela está ali ou não passa de imagem criada pela minha imaginação.

Pois a velha senhora ainda está no meio da rua quando surge um carro em velocidade e nem tenho tempo de fechar os olhos para não ver a tragédia que se desenha e me parece inevitável. Mas, incompreensivelmente, o carro não chega até ela, breca subitamente, um rapaz grita algo que não entendo e a cena para com a velha senhora seguindo em frente, como se ignorasse o perigo que quase roubou a sua vida há apenas um instante.

Meio sem jeito, afobado, corro até ela, pergunto se está bem, se precisa de algo. Só então percebo que a velha senhora não é velha, trata-se de uma moça que me olha e sorri sem nada dizer. Então do carro desce o rapaz que vem na direção da moça e diz que a cena será exatamente essa, o ensaio deu certo.

Não sei dizer como o rapaz e a moça sumiram, nem se aquele padre de batina que vinha do outro lado era real. Mas é manhã de sábado, o dia apenas amanhece, há sol batendo nas janelas fechadas e um homem me ajuda a levantar, perguntando se me recuperei, eu que havia caído na calçada, talvez um desmaio, um simples desmaio ou alucinação que me aconteceu nesta manhã quando a caminho da padaria.

Escrito por Ayrton Marcondes

2 fevereiro, 2013 às 8:07 pm

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Sapatos apertados

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Você sabe como é dureza andar com sapatos apertados. Pois me aconteceu passar um dia inteiro com um par de sapatos que não se deram bem com os meus pés. Dirão, talvez, que a culpa terá sido minha por adquirir sapatos baratos ou não tê-los experimentado adequadamente. Nada disso: paguei caro, boa marca e experimentei. Então, o que aconteceu?

Pois naquele dia fazia calor e escolhi meias fininhas para evitar o suor nos pés. Tão finas que parecia não estar com elas de modo que a pele quase ficava em contato direto com o couro. Couro esse, aliás, que não era tão maleável como eu supusera no início. Em todo caso couro, couro bom, couro caro, formando com o solado especial um elegante par de sapatos.

Ainda não disse a você, mas os sapatos eram de cor preta para combinarem com a calça escura do terno, quem sabe até com a gravata escura muito a caráter para a cor da camisa. Enfim, tratava-se de roupa de gala porque naquele dia me caberia - e coube - a função de apadrinhar um sobrinho que se casaria - e casou.

Confesso que no começo não cheguei a perceber o incômodo dos sapatos. Não sei se já aconteceu a você usar esse tipo de sapatos que enganam no começo. Parecem dar uma trégua como a estabelecer falsa amizade para só depois, quando não mais pudermos nos livrar deles, passarem a apertar, macerar a pele, expor a carne viva e obrigar-nos ao terrível ato de mancar quando não poderíamos. Foi assim comigo, acredite.

Entretanto, se estou aqui a falar mal dos meus sapatos, vejo-me na obrigação de ser honesto em relação a eles. Existe uma ressalva: eu não sabia - juro que eu não sabia - que o meu sobrinho decidira casar-se com uma moça digamos não muito convencional de modo que escolheu para lugar da cerimônia uma praia. Veja bem, não um lugar de praia, mas a própria praia, enfim na areia, junto ao mar.

Quando dirigia o carro notei que algo me incomodava nos pés, coisa pouca, você sabe como é. Mas quando cheguei ao lugar onde se daria a troca de alianças e, debaixo de um sol terrível, tive que avançar pelos quase 700 metros até onde a cerimônia ocorreria - 700 metros de areia, é bom que se diga - aí, nesse trajeto, durante ele, deu-se o desentendimento entre os meus pés e os sapatos que os abrigavam.

Não será necessário descrever aqui o tempo que fiquei em pé durante o casamento, o retorno pelos mesmos 700 metros andando na areia, a festa na qual as obrigações sociais simplesmente me impediam de permanecer sentado, aquela valsa que dancei mancando e jamais esquecerei, o raro momento de pura alegria no qual, finalmente, pude me livrar dos sapatos e passar dois dias usando chinelos, esperando que meus pobres pés voltassem a ser eles mesmos.

Lembrei-me disso hoje porque meu sobrinho ligou para convidar-me a uma festa de aniversário da mulher dele. Será linda, na mesma praia em que se casaram. Estão comemorando as bodas de algodão e, para eles, nada como voltar ao lugar onde se uniram para sempre nesta vida.

Minha mulher está animadíssima para a festa. Ela me fala sobre a viagem e concordo com ela embora passe o dia matutando num jeito de não ir, quem sabe simulando um enfarte, algum mal súbito, ou mesmo um quadro de catalepsia.

Escrito por Ayrton Marcondes

1 fevereiro, 2013 às 8:53 pm

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