2010 dezembro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para dezembro, 2010

Ê Mazembe

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Ê Mazenbe, Ê Mazenbe, Ê Mazenbe…

Ê Mazenbe é o grito da torcida do Mazembe, time do futebol do Congo. Não ouvi esse grito hoje a tarde, durante o jogo do Mazembe com o Internacional-RS. Não ouvi porque a turma do contra não conhece o grito da torcida do Mazembe. O que a turma do contra fez foi soltar foguetes na hora dos dois gols do Mazembe.

Afinal, quem são os caras da turma do contra? Ora, são todos os que torcem contra o Inter, aqueles para quem o clube gaúcho nem deveria estar disputando o Mundial da FIFA.

Houve tempo em que se um time brasileiro jogava contra equipes estrangeiras, as torcidas se uniam em prol da nacionalidade. Tratava-se da valorização do nosso futebol. Deixavam-se as rixas de lado, como se faz numa guerra na qual adversários se unem para defender o próprio país. Aqui aconteceu durante a Revolução de 1894 quando marinheiros, chefiados pelo Almirante Custódio de Mello, bombardearam a cidade do Rio de Janeiro. Por ocasião do episódio, conhecido como Revolta da Esquadra, ocupava a presidência da República o Marechal Floriano Peixoto que passou à história como um sujeito durão, curto e grosso como se diz. Pois, estavam governo e revoltosos em ação guerreira quando a frota inglesa, ancorada no Rio de Janeiro ameaçou intervir, entendendo que o tiroteio prejudicava os negócios ingleses na então capital do Brasil. Nessa hora, grave hora, imediatamente Custódio e Floriano pronunciaram-se, isoladamente, pela defesa do país. Quer dizer: primeiro contra os ingleses, depois voltamos ao nosso quebra-pau.

No futebol também era assim. Imagine se o Botafogo do Rio fosse jogar contra um time estrangeiro: ficava-se do lado do Botafogo. Quando o Santos venceu o Milan naquela célebre final, realizada no Maracanã, em  1963, os cariocas estavam lá, lotando o estádio e torcendo pelo Santos.

Creio que em parte pela globalização que desmitificou barreiras nacionais, em parte pelo Campeonato Brasileiro que intensificou rixas entre equipes de Estados diferentes, hoje em dia tornou-se difícil torcer por um time brasileiro, mormente se ele destaca-se demais. Talvez por isso, hoje tenham mandado para os ares foguetes na hora dos gols do Mazembe. Pelo mesmo motivo viu–se pessoas alegres com a surpreendente derrota do clube brasileiro.

Encontrei agora a pouco o meu vizinho do terceiro andar. Ele é santista roxo, adora o Neymar e conta, em off, que o Santos está recebendo dinheiro da Inglaterra, coisa que, sinceramente, desconheço. Relatou-me o vizinho que torceu para o Mazembe e, depois do jogo, assistiu e ouviu a todas as reportagens. Divertiu-se com o choro dos jogadores do Inter e vibrou com a alegria dos gremistas, rivais do Inter no Rio Grande. Como se vê, o meu vizinho foi fundo. Ele é daqueles que dá o beliscão e depois confere a pele para ver se ficou bem vermelha e dolorida.

Papo entrado em despedida, o meu vizinho perguntou se eu gostei da vitória do Mazembe. Pulei fora, disse que não vi um jogo que, afinal, não me interessava em nada. Logo em seguida chegamos ao terceiro andar e ele saiu do elevador. Então, sozinho e sem ninguém por perto, continuei a minha curta viagem, repetindo baixinho para ninguém ouvir:

-Ê Mazembe, Ê Mazembe.

Ascensão social

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Vez ou outra aparece na mídia o caso de alguém que enfrentou enormes adversidades, mas conseguiu transpor barreiras e realizou-se profissionalmente. Nesses dias muito tem-se falado do novo titular da Secretaria Nacional de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça. A história de vida de Marivaldo de Castro Pereira, 31 anos, é digna de filme, partindo da grande pobreza ao Mestrado na Faculdade de Direito da USP.

Há muitos anos fui procurado por um aluno que se preparava para o vestibular. Estudava no horário da noite e sonhava tornar-se dentista. De origem muito pobre, lutava ele pela sobrevivência e jamais poderia pensar em fazer o curso superior em faculdade particular. Além disso, o rapaz deixara de estudar há cerca de cinco anos, casara-se e tinha um filho.

Para ser sincero, atendi ao aluno tendo a nítida impressão de que as pretensões dele beiravam a loucura. Na época ele morava num bairro de São Paulo e trabalhava em outro de localização diametralmente oposta. Para chegar ao trabalho saia de casa às cinco horas da manhã; trabalhava até as seis da tarde, horário em que se dirigia ao cursinho; ao término das aulas - onze da noite – retornava para casa onde chegava depois de meia-noite. No dia seguinte, no horário de sempre, lá estava ele de novo, saindo de casa para mais um dia de trabalho e estudo.

Ora, esse cidadão me pedia que organizasse para ele uma agenda de estudos. Confesso que preparei um plano, em minha opinião, totalmente inexequível, mas o único possível. Distribui as horas de viagem de ônibus em minutos para estudo de cada matéria e insisti na importância do sábado a noite e o dia todo de domingo.

E lá foi ele com o papel, horários rabiscados, partindo para a missão impossível. Semanalmente eu o via em sala com seus colegas de classe, mas não mais nos falamos.

No final de janeiro do ano seguinte fui à escola e recebi a visita do aluno para quem preparara aquela louca travessia. Vinha ele radiante: entrara no curso de Odontologia de uma faculdade pública. Agradeceu-me muito pela ajuda. Recebi seu abraço constrangido porque, sinceramente, não acreditava no sucesso daquilo que combináramos.

Nunca mais o vi. Professores convivem com afastamentos definitivos, sendo algo raros encontros casuais, anos depois, com pessoas que perguntam: não era você que, em tal ano…?

A pequena história acima certamente se repete, envolvendo pessoas muito determinadas que acreditam ser possível a reversão de situações tidas como impossíveis. Vale dizer que aprendi muito com o meu aluno, o tal que estudava durante viagens de ônibus e queria ser dentista. Desde então me tornei um otimista incorrigível, beirando a loucura do Dr. Pangloss para quem tudo está o melhor possível. Sempre acho que algo que eu gostaria que acontecesse ainda vai acontecer e que sonhos existem para serem realizados. Às vezes me pego pensando friamente, equacionando que afinal o tempo está passando e, talvez, não existam mais oportunidades e tempo hábil para que certos anseios pessoais se concretizem. Então me lembro do meu aluno, da força e determinação que ele tinha: enfio o pé na estrada, achando que vai dar certo, tem que dar certo.

Pra frente, que atrás vem gente.

Brasil desbotado

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Na esquina da rua em que moro há uma bandeira do Brasil. Ela está no alto, presa por cordas, junto à rede de fios elétricos.

A bandeira do Brasil foi colocada ali dias antes do início da Copa do Mundo de 2010. Torcedores da seleção, animados com a possibilidade de conquista da Copa, colocaram o símbolo nacional naquele lugar para que todos o vissem e vibrassem com ele. A intenção era a de, provavelmente, criar uma corrente cuja força ajudaria a seleção nos difíceis jogos da Copa.

O ano de 2010 caminha para o final. O Brasil perdeu a Copa, muita coisa aconteceu desde então. Também tem chovido bastante de modo que a bandeira nacional está perdendo a cor: os símbolos estão quase apagados, poucas estrelas – representantes dos Estados - persistem.

Passo diariamente pelo local e acompanho a inevitável deterioração da bandeira. Quando menino aprendi a respeitar e amar a bandeira do meu país. Mais tarde, soube da orientação positivista do símbolo nacional, nascido na grande indefinição dos primeiros dias do então novo regime republicano. Eram tempos de transição: à falta de hino próprio, cantava-se a Marselhesa em cerimônias oficiais; bandeiras diferentes competiam para tomar o lugar da bandeira do Império. De todo modo, a atual bandeira nasceu da imperial: mantidos o fundo verde, a esfera azul, o losango amarelo, retirados os símbolos do Império, transferidas as estrelas para dentro da esfera, chegou-se à bandeira que hoje temos.

Quero dizer que a bandeira ali da esquina me incomoda. Ela me passa a sensação de um Brasil desbotado, menos vigoroso, imagem de homens públicos que não têm primado pela correção naquilo que fazem. Aquela bandeira rota tem algo de profundo, de triste, de resistência. Parece estar ali para dizer que a Copa não foi vencida, mas que ainda temos força, mesmo combalidos por tanta desfaçatez e desenganos. Nela persiste a fé cega das massas que acreditam em milagres e se deixam enganar pelas falsas esperanças dos hábeis manipuladores que as conduzem.

Amigos, é preciso salvar a bandeira da esquina, devolver-lhe cores vívidas, restaurar a confiança que ela pode infundir nas pessoas que passam.

O fim de uma era

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Tudo tem um fim, não há como evitar que isso aconteça. Eras de ouro passam e, ao final, restam sinais da glória e poder passados.

Está nos jornais a foto de um soldado iraquiano sentado sobre o capô de uma Ferrari cor de rosa. Ao lado dela um Porshe preto. Os dois carros, valiosos, estão empoeirados e com aspecto de abandonados. Ambos pertenciam a Uday Husseim, filho de Saddam Husseim.

Uday, como se sabe, nunca foi bom camarada. Filho primogênito de Saddam ele foi acusado de vários crimes. É dele a monumentalidade de ter-se irritado e matado um provador de comida durante jantar de homenagem oferecido, pelo governo iraquiano, à primeira-dama do Egito. Tortura com pancadas nos pés de jogadores de futebol da seleção nacional derrotados em jogos, sequestros de mulheres nas ruas para estuprá-las, espancamentos e outras barbaridades faziam parte do currículo do filho de Saddam. Depois da Copa do Mundo de 94 Uday obrigou os jogadores do Iraque a chutar bolas de concreto por não terem chegado à final.

Vivia este ser num palácio, com direito a jardins e zoológico particular. Foi morto, juntamente com o irmão Qusay, durante a invasão do Iraque pelos Estados Unidos.

Uday possuía 1200 carros de luxo, entre eles um Rolls-Royce  cor de rosa. A essa frota de veículos, muitos deles segundo as más línguas roubados, pertenceram a Ferrari cor de rosa e o Porshe preto que agora parecem descansar numa garagem de chão de terra. Não fossem os carros e esse soldado sorridente que parece olhar para o futuro, Uday só seria lembrado por sua imensa covardia, cometida contra cidadãos indefesos.

Os Husseim passaram, sua era de glória e poder chegou ao fim. Os EUA retiram-se de um país lançado à própria sorte depois de grande destruição. O homem que convenceu o mundo de que o Iraque possuía armas nucleares – aliás, inexistentes – deixou o governo dos EUA e dedica-se a publicar memórias. Quando a Saddam documento divulgado pelo WikiLeaks informa que ele tremia, descontroladamente, minutos antes de ser enforcado.

No mais a vida segue em frente, esquecida das mentiras e horrores praticados no passado, essencialmente comprometida com o agora.

A moça da capa

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O fechamento das capas de revistas envolvem aspectos variados, não sendo incomum que, quase na última hora, um novo acontecimento obrigue o pessoal que trabalha no setor a mudar tudo. É nesse ponto que começa a correria, tema bastante explorado em séries televisivas cujas tramas envolvem o jornalismo.

Há uns tantos anos publiquei um livro cuja capa requereu a participação de profissionais bastante criativos. Eram duas pessoas interessantes que marcaram comigo horário incomum de trabalho: onze da noite em um bar.

Cervejas a parte, a conversa girou em torno do conteúdo do livro. Na medida em que falávamos, os dois faziam desenhos que me apresentavam, perguntando se era isso ou aquilo etc. Ao lado da mesa uma cesta de lixo que ia sendo cheia de papel até que, lá pelas quatro da madrugada, chegou-se a uma forma final daquela que seria a capa.

Jamais me esqueci desses dois criadores, pessoas de outra latitude, que operavam em vácuos diferentes daqueles da minha vidinha ordenada de então. Soube, depois, que a eles competia a realização das capas de uma revista semanal de grande circulação no país.

Falo sobre capas porque ontem estive, casual e rapidamente, num lugar onde, a certa altura, um conhecido cochichou no meu ouvido, avisando que acabara de entrar no recinto a Capa do mês da Playboy. Distraído como estava, quando ele me disse isso imaginei uma capa enorme, de papel, chegando, coisa obviamente, absurda. Não demorou nem um segundo para que eu entrevisse, com o canto dos olhos, a moça esbelta que neste mês aparece na capa da revista masculina.

A essa altura não adiante negar que é impossível não dar uma olhadinha na figura só para conferir. Vem à cabeça tudo o que se diz sobre a irrealidade das fotos de revistas de mulheres que aparecem nuas, tratadas que são as fotos através de programas sofisticados que apagam manchas da pele, uniformizam rugas, acertam curvas e assim por diante. Então, estava ali, em carne e osso, a moça como se tivesse saído das bancas para dar uma volta no mundo real, obviamente vestida, fato deplorado pelos machos de plantão. Aliás, refiro-me a eles, aos machos de plantão, porque os presentes foram tomados por indisfarçável frenesi, descambando para mal disfarçados cochichos, certamente todos eles de teor avaliativo.

Dirão que homem é isso mesmo, não adianta disfarçar, o sujeito pode ter a mulher mais bela do mundo que na hora H não resiste a uma olhadela, homem é bicho que não presta… Pois, que digam. Agora que me perdoem os rabugentos e rabugentas, mas quem é que resiste a um simples olhar de certificação, de obtenção de dados para arquivo, de testemunho de um momento de talvez esplendor na vida de alguém, ainda que o momento seja de nudez, aliás o que tem isso?

O único comentário que cheguei a ouvir foi o de uma senhora. Ela disse a outra senhora que a acompanhava que a moça era representante de um tipo de beleza. Então me lembrei de minha mãe que tinha classificação própria para beleza. Na classificação de minha mãe, alguém pertencente à categoria “um tipo de beleza” não era dessas coisas não, ficava no mais ou menos, no muito barulho para alguém não tão especial.

O que achei? Ora, eu me diverti com o frenesi das pessoas e até com o modo simples e simpático com que a “Capa da Playboy” respondeu ao cerco de olhares que a tornaram alvo exclusivo de atenção.

- Mas, da moça, o que você achou, ao vivo e a cores ela corresponde ao esperado?

- Ah, isso não vou dizer não, não respondo não, pára que não sou besta.

Macunaima

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Macunaima faz parte daquela terrível lista de livros condenados a serem lidos por obrigação. O livro é indicado em escolas e aparece como leitura obrigatória em vestibulares.

Li Macunaima há muito tempo. Depois assisti ao filme em que o Grande Otelo fazia o papel do “herói sem nenhum caráter”. Confesso que me perdi um pouco no desconjuntado dos textos do Mário de Andrade, mas ainda trago comigo o prazer de uma leitura que me fez rir e entrever, nas aventuras tantas vezes absurdas do herói, o perfil de toda uma gente oriunda da mestiçagem e que se entendeu com os trópicos de modo bastante peculiar.

Não pretendo acrescentar uma só linha ao que já foi escrito sobre Macunaíma, livro de resto esmiuçado por críticos de várias gerações. Críticas à miscigenação, indianismo moderno, ausência de cronologia, surrealismo eivado de fantasias e lendas, oposição ao romantismo, desvinculação do português do Brasil daquele praticado em Portugal, aspectos folclóricos: o leitor encontrará textos sobre tudo isso e muito mais em inúmeras obras críticas sobre o livro de Mário de Andrade.

Como se sabe, as metodologias críticas empregadas ressentem-se de certo modismo crítico inerente às épocas em que são utilizadas. Não é o caso de analisar aqui abordagens possíveis para a análise de obras literárias, partindo-se do ideário crítico do romantismo, defendido pelo grupo fluminense que tinha por mentor Gonçalves de Magalhães. A esse sucederam outros perfis críticos como a crítica naturalista, impressionista, nova crítica…

A posteridade acrescenta novos olhares a obras que mereceram atenção crítica no momento de suas publicações. Entretanto, não deixa e ser muito interessante ouvir a voz dos chamados críticos de plantão que se debruçam sobre textos ainda frescos e abertos a toda sorte de novas interpretações. No caso de Macunaíma a crítica de momento ganha relevo porque retrata a transição entre o romantismo/naturalismo e o movimento modernista iniciado em 1922. O livro de Mário de Andrade foi publicado em 1928 caindo, por assim dizer, num meio ainda impregnado pelo romantismo. Teve ele, portanto, o condão da novidade novidadeira o que nos leva a imaginar o porte de estranheza do texto de Mário sobre público e críticos habituados a textos, digamos mais bem comportados.

Tenho em mãos um texto crítico, sobre Macunaima, de autoria de João Ribeiro, publicado no Jornal do Brasil, em 31/10/1928. Nesse texto, escrito no calor da hora, Ribeiro define o livro como “um conglomerado de coisas incongruentes no qual o autor utilizou materiais conhecidos das nossas tradições, e se não conseguiu dar harmonia ao conjunto, em todo caso concertou o mais que pode ideias e noções objecionáveis e contraditórias em si mesmas”. Acrescenta que Mário de Andrade é capaz de asneiras, mas asneiras respeitáveis, de talento, daí a delícia de ler um livro cuja graça transpira em todas as paginas e nos faz rir. Depois termina, dizendo:

Para nós é evidente que o autor, ainda contra a sua própria crítica, quis-nos pintar o homem brasileiro, indolente, mas astuto (em poucas coisas, na política por exemplo), sem caráter definido, perturbado pela heterogeneidade de seus elementos formativos, ignorante mas audaz, pobre mas fanfarrão de liberalidades, presumido como a mosca do coche, vassalo arrotando soberania…

Macunaima inseria-se, como obras anteriores a ele, num universo de cansaço intelectual e desgaste abusivo do romantismo. Rebeldia contra o passado, mas fase de instabilidade cujo futuro se constituía numa indagação para os contemporâneos do movimento modernista.

Do que veio depois, temos notícias nós, os pósteros.

Elizabeth Hanly Danforth

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Acordei ainda há pouco, é madrugada. Sua presença tímida e, contudo, vigorosa, preenche o espaço de minha casa. Não há como fugir de você, agora que o dia que há de vir se prepara para uma nova manhã. Ouço o canto dos primeiros pássaros, aqueles que gotejam pios regularmente, avisando que o mundo seguirá em frente, como antes, como depois.

Lembra-se de quando combinamos que o primeiro a morrer viria avisar ao outro sobre a existência da eternidade? Você não veio… Noites a fio esperei por um sinal, um simples sinal, talvez um aviso que revelasse a sua presença. Esquivou-se, esqueceu o combinado ou a eternidade não existe?

Lembra-se dos poemas que lemos juntos, cada verso, cada estrofe, sob a funda sonoridade da sua voz? Daquela madrugada em que nos perdemos na Ode Marítima, horas de mares bravios, ondas tempestuosas?

Tenho em minhas mãos um dos seus livros de poesias. É uma coletânea na qual Bandeira, Drummond, Oswald, João Cabral, o Nava e tantos outros esperam.

Abro o livro. Ao acaso caio numa página em que há um recorte de jornal. De quando? Em que momento você colheu esta pérola e recortou-a? Nenhuma referência. Nada.

É uma poesia de Elizabeth Hanly Danforth:

Sangue marítimo

Dei-te o meu coração, por causa de navios:

porque os teus ancestrais e os meus foram do mar.

Quando era certo serem “os homens, aço, as naves, lenho”,

E porque partilhavas dessa maneira austera de pensar.

 

Porque teus olhos se obscureciam, vendo a sombra

De uma gaivota cair, com seus movimentos ligeiros;

Porque notavas o sino de uma escuna que passava,

E exclamavas: “Gosto das mãos dos marinheiros!”

 

Quando outros homens se entretêm com livros e lareiras

E tremem, com as tempestades, e se aconchegam, friorentos,

Tu, pelo velho rumo de teus antepassados

Vieste rugindo pelo mar, entregue aos ventos.

 

Por esse encanto, que os homens da terra jamais conhecerão,

Por causa de navios, - dei-te o meu coração.

A tradução é de Cecília Meireles. Penso que talvez você tenha guardado essa jóia, escondida entre as páginas de um velho livro, para que eu a encontrasse nesta madrugada, mais de trinta anos depois. Você conhecia, melhor que ninguém, o peso das horas de desespero: cuidou para que eu não me perdesse justamente nesta noite, adivinhada de algum modo por você, pela sua enorme sensibilidade.

OBS: Elizabeth Hanly Danforth viveu durante 30 anos no Brasil onde se tornou conhecida por ser embaixatriz e poeta. Exerceu atividades no país, entre elas o de diretora do Institution Brasil-Estados Unidos e patrona da American Society. O livro In Rio on the Ouvidor and Other Poems About Brasil, de autoria da poetisa, é encontrado em sebos.

Pra Marancangalha

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Tudo cansa, até o interminável noticiário sobre ocupação dos morros no Rio. Tá bom, as coisas andam, que bom. O Exército vai atuar como força de paz, legal. Mas, as intermináveis entrevistas, o detalhamento de ocorrências… O pior é a repetição que acontece por atacado, em todos os canais.

O telefone toca. Atendo a moça da Telefônica que me oferece um plano novo, vantagens incríveis, como é que estou fora disso? Abro a caixa postal e sou atacado por uma montanha de envelopes, todos com assuntos comerciais. Nada de pessoal, só contas a pagar e ofertas de produtos a preços especiais para o natal que está chegando. No meio de tudo uma cartinha de pessoa doente que vive num asilo e pede que eu me lembre dos pobres e desvalidos com uma pequena contribuição.

O interfone toca. É o zelador para falar sobre o vizinho de baixo que reclama de um eterno vazamento, consertado não sei quantas vezes sem resultado. Penso em dizer que talvez por trás disso exista alguma ação terrorista, na água que escoa pode haver um veneno infiltrado, vindo do céu para matar todo mundo e, assim, redimir os pecados. Mas só resmungo, prometo chamar o encanador, mas não aquele que conversa demais e sempre fala na filha que vive com um cara que ele detesta e um dia vai matar.

Ligo o computador e descubro que o dia tornou-se radicalmente contrário a mim. Forças do mal estão agindo em todos os setores, a verdade é que estou cercado. O computador não passa do boot, o Windows não carrega, meu Deus, preciso enviar uns e-mails agorinha, é coisa de responsabilidade. Não posso ficar na mão de uma máquina rebelde que talvez esteja cansada de mim, das minhas esquisitices e agora se nega a me ajudar, talvez o conteúdo dos e-mails desagrade a esse monte de fios e cabos, sei lá.

Preciso sair, mas espero a minha mulher chegar porque não posso deixar sozinho o pintor que está às voltas com a massa corrida da parede da sala. Olho para o relógio, ando de um lado para outro nessa manhã de pura barbárie, na qual tudo teima em dar errado. É quando o telefone toca de novo e fala uma moça da agência de viagens, dizendo que dispõe de ofertas incríveis para o Natal e o ano Novo. São lugares maravilhosos onde eu serei mais feliz que na Passárgada do Bandeira. Conheço a moça, na última viagem foi ela quem cuidou de tudo, então me sinto a vontade para dizer a ela o que quero nesse exato momento:

- Minha filha, eu quero mesmo é ir pra Maracangalha, não importa o preço, você pode providenciar isso?

Escrito por Ayrton Marcondes

3 dezembro, 2010 às 11:19 am

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WikiLeaks

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Meu caro amigo há coisas sobre as quais fica difícil realizar um juízo perfeito. Em primeiro lugar é bom lembrar que caras como eu e você pensamos – só pensamos – que as nossas opiniões são bem formadas e isentas de contaminação alheia. É bom achar isso, raciocinar assim, dá-nos uma imensa sensação de liberdade, individualidade e poder de escolha. Acontece, porém, que gente como nós vive de informações e opiniões terceirizadas. Você bem sabe que nós não temos acesso a fontes primárias de informação, não presenciamos fatos significantes, não estamos presentes em momentos decisórios e mesmo a imagem que fazemos de pessoas públicas é acompanhada de traços de opiniões de outras pessoas. Enfim, a nossa opinião é, quase sempre, “mediada pela mídia”.

Sei muito bem que refletir sobre isso é muito desagradável. Aliás, existe uma vigorosa contrapartida a tudo o que está sendo dito: bem, se não fosse assim, como seria? Pois é, não tem outro jeito, para isso existem jornalistas, comentaristas e toda sorte de gente cuja atividade consiste em mostrar o que acontece, sempre sob determinada óptica que muitas vezes nem é a deles mesmos, mas das empresas em que trabalham. Só para ficar num exemplo, veja aí o atual empenho dos meios de comunicação em mostrar a guerra contra o tráfico no Rio, cobertura quase toda isenta de críticas, exceto poucas vozes que agora começam falar em excessos e corrupção como a facilitação de fugas de bandidos mediante pagamento. Pelo amor de Deus, não estamos contra a invasão dos morros, na verdade estamos eufóricos com o fato de finalmente o Estado ter encarado o problema do modo como está fazendo agora. Aliás, por que não agiram assim antes?

Ditas essas coisas - e outras de que nem é preciso falar - pergunto: que pensar sobre esse tal de WikiLeaks? De repente, os carinhas do WikiLeaks, dissidentes de várias nacionalidades, publicam pilhas de documentos sigilosos, abrindo o jogo sobre negociações, acordos, fofocas e tudo o mais que rola entre os representantes políticos de vários países. Eles abrem a Caixa de Pandora sem a menor cerimônia, doa a quem doer. Imediatamente surgem protestos, países em guerra ou em disputa por qualquer coisa protestam porque certos documentos colocam em risco a segurança de exércitos e por aí vai. Quanto a nós, que impressão nos fica sobre assunto tão controverso?

Deixando de lado o jogo que envolve a liberdade de expressão e outros valores tão caros à civilização – em geral não praticados, mas tão importantes – o fato é que, para o bem ou para o mal, trata-se de uma rara ocasião em que a informação tende a chegar até nós, pobres mortais contribuintes do Estado, sem mediação. Ficamos sabendo, por exemplo, que o Ministro da Defesa do Brasil revelou aos EUA que Evo Morales tem um tumor na cabeça. Aqui no nosso mundinho isso mais parece fofoca, mas os grandalhões terão as razões deles para valorizar informação dessa ordem, quem sabe prevendo como influir na vida dos bolivianos, caso a doença do presidente se agrave. Também somos informados de que os EUA criticam duramente a estratégia de defesa do Brasil: para os irmãos do norte o submarino nuclear da Marinha brasileira não passa de um elefante branco. Coisas como essas talvez não sejam tão importantes, mas estão documentadas. São, portanto, os documentos que estão a falar conosco e não pessoas que expressam suas opiniões sobre o conteúdo deles.

Não sei o que você acha disso.  O WikiLeaks promete a divulgação dos quase 250 mil documentos sigilosos pirateados por um jovem soldado nos arquivos do governo norte-americano. Tem gente por aí morrendo de medo de que certas inconveniências sejam reveladas. Segredos de Estado como reservas de urânio, acordos para invasão de países etc têm vindo a público, mas o WikiLeaks promete muito, muito mais.

O império norte-americano está sendo posto a nu pelo WikiLeaks. Das consequências disso, para o bem ou para o mal, só saberemos após tudo ser divulgado.