2010 fevereiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para fevereiro, 2010

Para que serve o passado?

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Afinal, para que serve o passado?

Tempos atrás vi acontecer uma tremenda discussão entre dois professores de História. Estávamos numa mesa de restaurante falando sobre as coisas inúteis de sempre quando entre os dois professores instalou-se a dúvida sobre a importância do passado.

Um dos professores defendia a idéia de que o passado não tem importância, ainda mais quando o historiador se detém sobre fatos pontuais acontecidos nessa ou naquela data. Para ele a história não se repete, as lições que poderia oferecer carecem de valor porque não há como separar acontecimentos das circunstâncias que os geraram e dos homens que ao seu tempo neles atuaram. Daí ser esse professor de opinião de que mais valem os estudos sobre longos períodos que podem mostrar tendências, nisso filiando-se ele a uma das vertentes da historiografia francesa.

Já para o outro professor a sua profissão careceria de sentido caso não se voltasse para o passado. Para ele o passado é o objeto da história, qualquer que seja a abordagem escolhida para o seu estudo. Dizendo que há muito a aprender com homens e acontecimentos de tempos idos concluiu o professor não compreender como o seu colega poderia exercer o seu ofício junto a estudantes sem considerar a importância do passado.

Embora as evidentes interseções das duas posições, o fato é que cada um dos postulantes acabou enveredando para posições que se confundiram sem que, entretanto, abrissem mão de suas colocações originais. Assim, a discussão não deu em grande coisa e os presentes ficaram bastante aliviados quando o assunto foi encerrado e pode-se voltar aos temas inúteis de sempre.

Lembrei-me da discussão entre os dois professores de história ao reler uma entrevista que o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda cedeu ao jornalista Homero Senna, tendo por tema o modernismo. Infelizmente, não foi possível precisar a data da exata da entrevista, embora tenha sido concedida por Sérgio entre os anos 1944 e 1949.

Durante a entrevista Sérgio Buarque de Holanda falava sobre o tradicionalismo quando afirmou que o culto à tradição e o amor do passado pelo passado é infecundo e negativo sob o ponto de vista social e político. Para ele o passado como simples espetáculo não interessa. Disse ainda o sociólogo:

“Creio que é de Goethe a frase de que a função da História é libertar-nos do passado. Nada mais certo. O conhecimento da História nos liberta do passado, nos faz conhecer melhor o presente e nos prepara para encarar sem preconceitos o futuro. Mas, “o passado pelo passado” é uma espécie de “arte pela arte”, capaz de estorvar todo e qualquer progresso”.

Embora retirada do contexto em Sérgio Buarque falava sobre o tradicionalismo e o conservantismo, as observações acima sobre o passado são pertinentes, fato que leva discussões do tipo “para que serve a História” a outros patamares.

Deixo o assunto inconcluso. Existem obras inteiras de destacados historiadores que tratam desse tema. A verdade é que só falei sobre isso para lembrar que existem pessoas a quem agrada muito ouvir vozes do passado para retirar delas algo que sirva, como disse Sérgio Buarque, para conhecer melhor o presente. Pessoas com esse tipo de hábito costumam ler obras antigas, ainda que por simples curiosidade. Esse é o caso do livro “República das Letras”, de Homero Senna, publicado pela Livraria São José, Rio de Janeiro, em 1957. O livro, certamente esgotado, será talvez encontrado em sebos. Quem o encontrar poderá se deliciar com entrevistas de vários expoentes da cultura brasileira, cedidas antes dos anos 50. Entre os entrevistados figuram nomes como os de Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e José Américo de Almeida, entre outros.

As cinzas da quarta-feira

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Os últimos foliões passaram pouco depois das quatro horas da manhã. Eram cinco. O último deles arrastava um enorme chapéu de bruxa e mancava de uma perna.

Às cinco horas um cachorro ganiu longamente e ouviu-se, ao longe, o miado de um gato no cio. Pouco depois, um homem parou defronte a porta da nossa casa e chorou, copiosamente. Era o Beto, ainda inconformado com a minha prima Helenice que o deixara por um motorista de caminhão do Sul de Minas.

Às seis tocaram os sinos das igrejas de todas as cidadezinhas do Brasil. Nessa hora ouvi barulho na cozinha: minha tia Joana colocava lenha no fogão para o café da manhã.

Não demorou muito para que se ouvissem passos na rua. Eram os fiéis que se dirigiam à igreja, atendendo ao chamado dos sinos. Em pouco começaria a missa e os fiéis receberiam, nas testas, o sinal de cinzas da quarta-feira.

De repente, terminara o carnaval e entráramos na quaresma. Eu tinha treze anos de idade e constatei, espantado, que o tempo passa depressa. Depois devo ter dormido porque só me lembro de minha mãe me chamando, mas talvez isso tenha acontecido num outro dia, bem longe do carnaval.

Guerra ao Terror

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Apontado pelos críticos norte-americanos como o melhor filme do ano, “Guerra ao Terror” faz jus às premiações que vem recebendo e às nove indicações ao Oscar 2010. De fato, o filme oferece ao expectador tensões elevadas em nível máximo, tudo isso com um habilíssimo trabalho de câmeras que se esmeram em mostrar pequenos detalhes e a grande atuação dos atores protagonistas do enredo.

Em Guerra ao Terror” (The Hurt Locker), dirigido por  Kathryn Bigelow, três soldados, William James (Jeremy Renner) JT Sanborn (Anthony Mackie) e Owen Eldridge (Brian Geragthy) são encarregados de desativar bombas. James veste um escafandro e vai desarmar explosivos enquanto os outros dois ficam na retaguarda, de olho em qualquer pessoa ou movimento suspeitos.

O tema de fundo é o pós- guerra no Iraque. Não importa muito o passado histórico pregresso da ação, as motivações que levaram o governo Bush a invadir o Iraque, colocando fim ao governo de Saddam Hussein. O que importa mesmo é o quadro dramático de um país que na verdade poderia ser qualquer um, no qual os escombros do pós-guerra escondem milhares de bombas armadas para explodir.

 “Guerra ao Terror” é um filme de ação. Entretanto, trata-se de um filme que, a seu modo, procura burlar as fórmulas pregressas utilizadas em filmes de guerra. Aqui, o horror não está na guerra em si, mas em suas consequências e no modo como o perigo se insinua no espírito dos soldados. Existe um ritmo frenético de ações que se repetem diariamente, colocando em risco a vida dos soldados. Entretanto, cada ação em si é demorada porque envolve cuidados para desarme de bombas. É do contraste entre o ritmo frenético de ações e a lentidão dos processos de desarme que gera-se a grande angústia que toma conta do expectador. A isso soma-se a contagem regressiva dos dias que faltam para a equipe de soldados deixar o Iraque.

Assim, cada dia pode ser o último, cada bomba o prenúncio do fim. Por isso, a rotina dos soldados consiste numa espécie de sobrevida proporcionada pelo acaso que os faz violentos consigo mesmo e entre si: só com a violência interior pode-se enfrentar a violência exterior, num curioso mecanismo de válvula de escape necessária à preservação do equilíbrio e da sanidade.

O sargento William James é um especialista para quem o desarme de bombas parece ser uma arte. Ele guarda embaixo de sua cama uma caixa com pedaços de fios e mecanismos de bombas que desativou: são os seus troféus, espécie de compensação pelos momentos de perigo que enfrenta no seu cotidiano.

O sargento William James não é um homem comum e esse fato justifica a sua dúvida em participar de novas missões tremendamente perigosas. Há quem tenha visto na necessidade de James continuar desarmando bombas uma espécie de vício: a guerra vicia. Não será, certamente, essa a melhor interpretação. O fato é que certas pessoas são talhadas para determinadas atividades e, principalmente, momentos especiais.  Existem homens que não nasceram para viver em tempos de paz, aos quais não se adaptam. As guerras oferecem oportunidade a espíritos inquietos e que amam o perigo. William James é um desses homens, ele precisa da guerra e a guerra precisa de homens como ele, nesse fato a explicação a opção que ele faz no fim do filme.

Afinal, o que se canta no carnaval?

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Dias atrás a Rede Globo promoveu um desafio carnavalesco entre cariocas e baianos. De um lado a bateria de uma escola de samba do Rio de Janeiro com um dos seus destaques; de outro a bateria do Olodum acompanhada de uma sambista baiana. De cara o Rio perdeu no cenário: os cariocas foram filmados em seu lugar de ensaios; os baianos serviram-se da beleza do Pelourinho, descambando, morro abaixo, para a Baixa do Sapateiro. Foi injusto porque os cariocas deveriam estar no morro da Urca ou na praia de Copacabana para que houvesse equilíbrio de cenários.

No mais, o que se viu foram comparações entre toques das duas baterias com suas paradinhas, o imbatível samba no pé da mulata carioca e o rebolado insano e inimitável da mulata baiana. A cada final de exibição dos cariocas, os baianos diziam “mandô bem” e iniciavam o seu revide; o mesmo acontecia ao final das exibições dos baianos quando os cariocas diziam o mesmo “mandô bem” e revidavam.

Não sei dizer quem ganhou se é que o desafio entre estilos diferentes deveria ter um ganhador. Entretanto, a disputa mostrou o sangue ardente de um carnaval em estado puro e que deixou de existir para cobrir-se de adereços tantas vezes dispensáveis, geradores de alegria mais visual que de coração. O fato é que o carnaval ainda existe na alma dos brasileiros embora tenha se descaracterizado, invadido que foi por uma profusão de ritmos que fariam Ari Barroso mexer-se dentro do seu caixão acaso pudesse ouvi-los.

Mas, afinal, o que se canta no carnaval? Cantam-se sambas nos desfiles das escolas, sambas de encomenda porque adaptados aos enredos. Canta-se um pouquinho de samba nos carnavais de rua e de clubes. Mas que se canta mesmo é o axé, nascido da fusão entre o frevo, o maracatu, o forró, o raggae e o calipso, namorado d pop-rock. Os velhos sambas, grandes sucessos do passado, são cantados e dançados meio sem entusiasmo; o axé levanta o povo com seus gritos de guerra e letras que todo mundo conhece e repete. As músicas de Ivete Sangalo, do Chiclete com Banana e outros artistas dominam porque estão no gosto popular. Resta saber se isso é carnaval.

Carnaval ou não, o axé é a música dos trios elétricos que arrastam multidões, é a música que está na boca o povo. Não importa muito que a um observador desavisado as músicas se confundam numa batida única mais parecendo que a uma partitura padrão se adaptaram incontáveis letras diferentes. O sucesso é garantido, por isso as bandas tocam e levantam o povo como o ritmo frenético do axé.

Para quem é saudosista, para quem ainda procura saber qual é o samba que será cantado pelo povo no carnaval, o axé poderá parecer um grande porre. Mas, se para esses ainda falar mais alto o espírito carnavalesco o remédio é tomar umas e outras e deixar rolar a música.  Olhe que ela poderá até tornar-se muito interessante em tal circunstância.

Os poetas bissextos

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Há casos nos quais fazer uso das idéias dos outros não é pecado. Acontece quando nos deparamos com algo que nos parece interessante demais e somos levados pela vontade invencível de compartilhar o que vimos com outras pessoas. Esse é, seguramente, o caso dos poetas bissextos cujas poesias Manuel Bandeira recolheu em antologia.

No prefácio que antecede autores e suas poesias Bandeira aconselha-nos a não procurar a expressão “poeta bissexto” em dicionários. Depois, define como bissexto “aquele em cuja vida o poema acontece como o dia 29 de fevereiro do ano civil”. Ou seja: “bissexto é todo poeta que só entra em estado de graça de raro em raro”.

Em seguida Manuel Bandeira reproduz o que escreveu Vinicius de Moraes sobre poesia brasileira contemporânea para a revista argentina Sur, no número de setembro de 1942. Disse Vinicius:

“…poetas que nós, seus íntimos, chamamos cordialmente de bissextos – poetas sem livros de versos – bissextos pela escassez de sua produção, cuja excelência sem embaraço os coloca ao lado dos mais citados.”

Vinicius exemplificou:

“Bissexto é um Pedro Dantas cujo poema “A cachorra” passou a ser uma obra-prima da literatura brasileira. O mesmo se pode dizer de “O defunto” de Pedro Nava, uma das peças mais belas e mais sinistras da nossa poesia. Bissexto é um Aníbal Machado, escritor esporádico, em quem o verso é uma espécie de estado de graça que assoma entre largos períodos de sombra; um Dante Milano, notável pela unidade da sua forma poética, de grande pureza; um Joaquim Cardoso, cuja produção se recusa à intimidade dos que lhe são mais chegados, tão íntima quer ser; um José Auto, poeta que se tem dez poemas, terá muito, mas em quem a poesia é uma fatalidade de condição. Bons poetas que futuramente figurarão, estou certo, ao lado da melhor poesia brasileira.”

No mais Manuel Bandeira alonga-se sobre características dos poetas bissextos, chamando—nos atenção a temática que é pobre, quase sempre reduzida a dois temas: o de certa dor nos acidentes passionais e o que Mário de Andrade chamou, com tanta felicidade, de “tema da vida besta”.

A antologia organizada por Bandeira reúne várias obras de poetas bissextos. Não deixa de ser uma curiosidade uma passada de olhos no índice onde encontramos nomes que não suporíamos ligados à produção poética, ainda que de quando em quando.  Para se ter idéia fazem parte da relação: Aurélio Buarque de Holanda (mais tarde o “Aurélio” que conhecemos pelo seu dicionário), o pintor Di Cavalcanti, Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande e Senzala”, Euclides da cunha, autor de “Os sertões”, o cronista Rubem Braga e muitos outros. Sobre Pedro Nava é interessante notar o fato de ele ter atravessado décadas na condição de bissexto, escrevendo ocasionalmente artigos na imprensa. Só em 1972 – oito anos antes de morrer – Nava iniciaria a série de publicações englobando os livros – “Bau de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão-de-Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-Trevas” e “O Círio-Perfeito” –  com os quais logrou traçar um painel completo da cultura brasileira no século XX.

A “Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos”, de Manuel Bandeira, foi publicada pela Livraria Editora Zelio Valverde S. A., Rio de Janeiro’, em 1946. Existe uma 2ª edição revista e aumentada, publicada em 1964 por Organização Simões (Rio de Janeiro). Nas livrarias encontra-se uma edição da obra, publicada pela Editora Nova Fronteira, em 1992. Leitura indispensável.

A prisão de Arruda

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José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal, está preso. Não o prenderam pelos atos de corrupção de que é acusado: seu crime é tentativa de suborno de pessoa apta a testemunhar naquilo ficou conhecido como “mensalão do DEM”.

O fato é inédito. Historiadores buscam nas páginas da História caso em que um governador em exercício tenha sido recolhido à prisão. Mas Arruda conseguiu. De tempos para cá sua figura tornou-se intolerável pela sua cara de pau. Flagrado recebendo dinheiro de um acessor de seu governo veio ele a público explicar que se tratava de verba para a compra de panetones para pessoas carentes. Maior escárnio impossível.  O Brasil inteiro viu as imagens de Arruda recebendo o dinheiro. O Brasil inteiro também viu políticos ligados a ele recebendo dinheiro que foi colocado em bolsas, nos bolsos e até dentro de meias.

Mas, o que se seguiu? Ora, um bem armado esquema de blindagem do governador que, para deixar o cargo, precisaria passar por um processo de impeachment. Por outro lado, as investigações sobre lavagem de dinheiro e corrupção demoram, o mesmo acontecendo com os processos, travados que são eles pelas inúmeras possibilidades de recursos impetrados à Justiça.

Vai daí que Arruda podia se dar ao desfrute de posar como inocente e, mais que isso, como injustiçado e perseguido. Escárnio, puro escárnio, no qual as regras legais do jogo forneciam ao governador meios bastante seguros de chegar ao fim de seu mandato.

O que José Roberto Arruda fez pelo Brasil foi levar a graus extremos a desfaçatez, arranhando de modo irreversível a já tão abalada classe política brasileira. Arruda expôs publicamente o emaranhado de artifícios de proteção e camuflagem de que dispõem os homens enquanto no poder. Ele mostrou sem qualquer crise pessoal e a céu aberto a força de manipulação de que podem se servir homens públicos mal intencionados.

O que Arruda fez de maior foi ilustrar o processo de corrupção, o modo de geri-lo e as formas de garantir a impunidade. Talvez por isso sua prisão tenha o sabor de revanche, de justiça enfim realizada, ainda que, depois do carnaval, um habeas corpus possa restituí-lo à governança.

Agiu bem o ministro do Supremo Tribunal Federal ao deixar Arruda preso nas dependências da Polícia Federal. Era o mínimo que a população esperava. A imprensa escrita e falada trata do assunto em tom de alívio, retratando o sentimento geral que domina o país.

Arruda está acabado, pego por um detalhe e não pelo principal de que é acusado. Mas, fincou uma estaca no peito da República. Se por um lado sua prisão nos garante a inexistência de cidadãos acima de qualquer suspeita, por outro nos revela quão frágeis são os meios de que se dispõe para punir aqueles que se locupletam com a prática da corrupção.

Carnaval

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Estão aí o carnaval e a folia. As escolas de São Paulo aprimoram-se em luxo e riqueza. As do Rio fazem do Sambódromo palco de evento de fantástica magnitude. Fora esses lugares o carnaval se espalha pelos quatro cantos do país. Quem resiste ao apelo do Galo da Madrugada no Recife?

Nem adianta dizer que o carnaval mudou. Não é mais o mesmo? Não existe mais a folia pela folia?  Os estudiosos que me perdoem, mas carnaval é festa orgulhosa demais para se dar ao desfrute de ser explicada. É festa que faz parte da alma coletiva do povo, a tal alma madrugada do povo Emboaba. É festa dançada a samba, frevo e todos os gêneros de batuque. O carnaval é o filho um pouco mais comportado do entrudo que gerou essas formas tão desconexas de comemoração nas quais a única lógica possível é justamente a falta de lógica.

Mas, nada disso importa muito. O que continua valendo é a alma do folião. Estou me referindo ao folião de raça como o do samba do Ari Barroso: aquele que se acaba num cordão e só volta para casa na quarta-feira, cantando a Jardineira. Pois esse folião existe, ele é parte essencial do imaginário nacional, sem ele não há carnaval.

Do folião de raça, desse folião de samba que tem poesia na letra, deriva o exército de foliões que toma as ruas sob o som da batucada infernal. O Brasil só continuará a ser Brasil enquanto de repente, não mais que de repente, um sambista dobrar a esquina com um pandeiro na mão. A figura desse sambista-padrão todos conhecem: chapéu de malandro, camisa listrada, calça e sapatos brancos, o sorriso maroto. Sem esse cara o Brasil não é o Brasil, as mulatas não rebolam, as passistas ficam congeladas num último movimento, as escolas não vão para a pista, não há samba-enredo, não existe carnaval.

É carnaval. Que venham os abre-alas. Quem não quiser entrar no cordão, pelo menos sorria. A alegria geral não foi feita para deixar ninguém de fora. Meu caro, considere: nós brasileiros já vivemos na pipoca dos acontecimentos, naquela estreita margem dos que não tem nome e acompanha o cortejo do dia-a-dia. Pois nesses quatro dias, vamos entrar na outra pipoca, essa que corre atrás dos trios elétricos.

Os 30 anos do PT

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Conheci um camarada que tinha um jeito peculiar de dizer como entendia o problema dos outros. Certa vez, por exemplo, eu e ele conversávamos com um jovem japonês que afirmava não conseguir emprego justamente por ser japonês. Ao que o meu amigo disse:

- Eu já fui japonês, sei como é isso.

Era o jeito dele de irmanar-se aos outros, jeito aliás nem sempre bem sucedido porque, dependendo da situação, a coisa podia ser entendida como gozação.

Lembrei-me do meu antigo camarada e do seu estranho modo de ser nesses dias em que os jornais estão forrados de notícias sobre os 30 anos de existência do PT. De um lado figuram críticos ásperos ao partido, de outro os petistas que defendem a bandeira vermelha dizendo que o partido não se descaracterizou e manteve-se fiel às propostas iniciais.

Quem sou eu, primo, para entrar nessa briga de cachorro grande, movida por interesses maiores entre os quais está a disputa pela presidência da República. Mas, creio que nesse palavrório todo os petistas estão em desvantagem porque é difícil para eles demonstrar que o PT não mudou e permaneceu fiel aos seus princípios ideológicos. Daí que acho muito justo dizer aos petistas:

- Eu já fui petista, sei como é isso.

O problema é que já fui mesmo, vá lá que por curto período de tempo, na época da disputa entre o Collor e o Lula para a presidência da República. Na ocasião, o PT surgia de fato como uma alternativa para o país. Era uma espécie de luta entre a casagrande – representada pelo patriarcado nordestino na pessoa de Collor – e a senzala – a imensa massa de trabalhadores tendo a sua frente Lula, o seu expoente. Tinham, então, os líderes petistas uma linguagem, senão nova, pelo menos impactante, algo que permitia entrever uma mudança no país sempre no sentido de melhora, desenvolvimento etc. Havia, sim, a parte radical do discurso, mas essa nunca preocupou de fato porque se supunha que, se chegassem ao governo, os líderes petistas não iam, da noite para o dia, transformar o país segundo o arrivismo das palavras de seus membros mais extremados.

Ganhou o Collor e deu no que deu. Depois houve toda aquela panacéia do Pedro Collor, a corrupção do PC Farias (hoje seria café pequeno, não?) e o grande movimento que terminou com a renúncia do presidente. Naquela hora tive a impressão de que a história do país teria sido outra se o Lula tivesse sido eleito. Teríamos evitado todo aquele transe e a estagnação do país com as tresloucadas medidas econômicas da Zélia e companhia etc. Teríamos?

Pois hoje acho que votei errado naquela época. Talvez tenha sido melhor o Collor ganhar e acontecer tudo o que aconteceu. A verdade é que, aos trancos e barrancos, o país amadureceu. Agora, imagine você, se o Lula tivesse levado a eleição e se tornado presidente naquele instante. Ele não teria forças para domar o PT, nem o radicalismo e quem sabe o que teria acontecido ao país. Foi muito bom ele perder três eleições seguidas para ganhar depois. Durante esse tempo o atual presidente também amadureceu e ficou forte, tão forte a ponto de fazer do seu partido uma sombra que ele amolda do jeito que quer. Durante esse tempo muitos dos principais membros do partido envolveram-se em situações ilícitas e foram alijados do primeiro plano da política brasileira. Os Genoínos, os Dirceu, os Palocci e muitos outros decepcionaram aqueles que neles tanta confiança depositaram.

De modo que aí está um partido que fez o país sonhar com outro tipo de ordem, mas que decaiu transformando-se num partido movido a interesses, fazendo jus à alcunha de “Partido do Poder” como frequentemente é chamado pelos articulistas de jornais.

Oscar Wilde

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É normal os críticos baixarem o pau em Oscar Wilde. Demais ele parece ter nascido para ser controverso. Existem naturezas proporcionadas para escandalizar. São como espasmos dentro de uma civilização conservadora que se respeita e quer-se respeitada. Nesse mundo de valores tão claros e estabelecidos a ordem funciona como um remédio destinado a sanar as feridas das almas. Aí tudo se encobre: os malfeitos são punidos, as cores são contidas, os seres aberrantes punidos exemplarmente, tudo em nome de uma sociedade estável, equilibrada e ordeira.

Aí surge um Wilde. Ele é o avesso do mundo em que vive, a face escancarada que não se quer ver, a denúncia daquilo que se encobre, a subversão dos costumes, o outro lado que os homens abominam porque inconfessável. Wilde surge como um tribuno que tem o dedo em riste contra a situação humana, mostrando que a hipocrisia é o tom da vida dos pequenos e limitados seres que defendem aquilo que chamam de normalidade.

Nesse mundo de mentalidade vitoriana, Wilde é um anormal. Ele ama um jovem de seu sexo, deixa-se explorar por ele, joga a sua vida por um amor tido como sem sentido. Mas, não se pode ignorá-lo: Wilde é um dandi, Wilde afronta com suas extravagâncias, Wilde é também um gênio. Wilde escreve peças de teatro, Wilde cria Dorian Gray.

A certa altura Wilde escreve uma carta ao pai do rapaz a quem ama. O pai do rapaz o processa, a sociedade vitoriana enfim tem a oportunidade de defrontar-se com Wilde, face a face. Durante o julgamento é lida uma carta escrita por Wilde ao amante. O juiz pergunta a Wilde se considera coisa normal alguém escrever um texto como aquele. Wilde responde:

- Nada do que eu escrevo é normal.

Wilde é condenado, preso, sua vida termina poucos anos depois. Ficam os seus livros que sobrevivem a ele. Fica o livro “O retrato de Dorian Gray” que você pode encontrar nas livrarias. Há edições em português publicadas pela L&PM Editores e pela Hedra. Existe, também, uma edição bilíngue, da Landmarck.

Escrito por Ayrton Marcondes

10 fevereiro, 2010 às 10:46 am

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Bestialidade em Recife

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Alcides do Nascimento Luz foi o primeiro classificado no vestibular da Universidade Federal de Pernambuco, em 2007. O fato não teria chamado atenção se Alcides não fosse filho de uma vendedora ambulante e oriundo de escolas públicas. Na ocasião, Alcides foi entrevistado pelo Fantástico, sendo apresentado como exemplo de superação.

No último sábado Alcides estava em frente à sua casa, na comunidade carente onde vivia com sua mãe. Dois homens se aproximaram dele e, confundindo-o com outra pessoa, deram dois tiros na sua cabeça.

Alcides tinha 22 anos e cursava Biomedicina na Universidade Federal de Pernambuco. A bestialidade dos homens que tiraram a sua vida, interrompendo uma carreira certamente brilhante, é revoltante. Lamentavelmente, estamos habituados à criminalidade que  tornou-se cotidiana. São tantos e horríveis os crimes que acontecem que somos obrigados a fazer vista grossa a eles para sobreviver com alguma paz.   Entretanto, o assassinato de Alcides é triste demais para que o ignoremos.

 De tudo isso sobra essa coisa horrível que amarga os sentidos: a náusea.