2010 janeiro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para janeiro, 2010

Enxaqueca

com um comentário

image: freedigitalphotos.net

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Estima-se que nos EUA 28 milhões de pessoas sofram de enxaqueca. Não sei dizer sobre o número provável de casos no Brasil, mas gente demais tem enxaqueca. De todo modo, a doença é mais comum em mulheres: para cada três mulheres que apresentam enxaqueca existe apenas um homem com o problema.

 

 

Problema? Problemão! As crises de dor lancinantes não escolhem hora e ocasião. Do nada inicia- se o ciclo doloroso com,  hemicrania, vasos sanguíneos pulsando e todos os comemorativos das crises de enxaqueca.

Certos fatores predisponentes funcionam como gatilhos, dando início às crises. Esses fatores variam de pessoa para pessoa: odores, bebidas alcoólicas, tensões emocionais, nervosismo, cansaço, sons repetitivos e altos etc. Acontece de uma pessoa estar muito bem e, de repente, entrar em contato com um cheiro forte, como o de gasolina, por exemplo. A partir daí inicia-se o ciclo com dor progressivamente mais forte que, em alguns casos, é acompanhada de suor, mal-estar, vômitos e necessidade de recolher-se a ambientes sem luz.

Escrevo sobre esse assunto por fazer parte dos que têm enxaqueca e, com freqüência, verificar que muitas pessoas tentam combater o mal através do uso cotidiano de grandes quantidades de analgésicos. Aliás, é bom lembrar que o uso excessivo deles passa a potencializar ainda mais as crises. Existem tratamentos para enxaqueca que passam pela consulta a médicos especialistas. Se o mal não pode ser inteiramente curado, importa saber que há maneiras de minorá-lo, sendo que em certos casos chega-se à ausência de crises.

Quem tem enxaqueca sabe que ambientes de luz excessiva podem desencadear crises. Isso em geral acontece quando se passa de um ambiente de semi-obscuridade ou obscuridade para outro de muita claridade. Até pouco tempo não existiam explicações para esse fato que foi esclarecido por cientistas americanos em trabalho publicado pela Revista Nature Neurocience. Como se sabe, o nervo óptico tem a função de levar os estímulos luminosos recebidos pela retina do globo ocular até o cérebro, na região do tálamo. Segundo os cientistas, os neurônios da região do tálamo são muito sensíveis, sendo capazes de reconhecer, ao mesmo tempo, luz e dor. Isso representa que a luz contribui para aumentar a sensação dolorosa, amplificando-a.

Sejam quais forem os fatores desencadeantes ou as suas causas, a enxaqueca alia, ao sofrimento provocado pela dor, enormes problemas práticos para as pessoas que sofrem desse mal. Muitas pessoas têm dor de cabeça diariamente, inclusive durante os períodos de sono. Irritabilidade e queda da produtividade estão entre as conseqüências mais comuns da doença.

Mas, dá para ir em frente. Este texto, mesmo, foi escrito durante um período de dor de cabeça.

A desconstrução da arte

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Todas as épocas tiveram os seus momentos de desconstrução que, mais tarde, tornaram-se moeda corrente para, por sua vez, serem desconstruídos pelas idéias novas de novos profetas. Foi assim que o realismo substituiu o romantismo, o modernismo zombou de tudo que veio antes dele e a ordem sucumbiu à desordem, então chamada de nova ordem.

Tudo isso faz parte da natureza do homem, da necessidade de renovação, do instinto de progresso, da fome de epílogos que inaugurem novos tempos.

Dentro de tal contexto, o real e o linear sucumbem. É preciso um novo traço, uma nova cor, a deformação da imagem, o avesso das palavras, a quebra do sentido, a ruptura da lógica, a negação do sequencial. Só assim o artista estará conectado com um mundo sem certezas, arrivista, no qual os acontecimentos forçosamente negam a racionalidade.

As novas realidades oferecem o perigo de triunfarem, entre os poucos verdadeiros artistas, os que apenas desconstroem, os iconoclastas que não sabem esculpir, os que desenredam por não saber enredar. Assim se fazem muitos gênios de momento, arautos de novidades incompletas que caem no gosto do público, propagando obras ininteligíveis, arrastando legiões de pessoas atraídas por algo que têm por avançado ainda que lhes escape o sentido do que observam ou lêem.

Ultimamente tem sido assim, entre nós, na literatura, na música, na moda, no cinema, na pintura, nas artes em geral. Premia-se o que é vago, valoriza-se o incerto, atribui-se pós-modernidade ao que pode ser catalogado como simplesmente “estranho”. A sociedade de consumo propaga as novidades, os pseudocultos integram-se para não ficar de fora e muitos intelectuais aderem por receio. Desse modo, a arte afasta-se de seus parâmetros, os clichês retornam camuflados e são enfiados goela abaixo do público. Nasce, assim, uma legião de consumidores de arte padrão, imbecilizados, devotos de uma falsa arte incensada pelos críticos de plantão.

Em períodos como este as boas narrativas não encontram espaço, os clicks inteligentes das máquinas fotográficas são desprezados e a boa poesia é substituída pela versificação sem sentido que passa por avançada.

Os verdadeiros talentos? Resta-lhes procurar outra profissão.

Os críticos? Deixam de existir ou sucumbem no solo movediço do “nem sim, nem não”.

E a arte, a verdadeira arte? Ora, a arte…

Se não existe um consistente movimento a refutar, a produção artística ou segue o seu curso normal ou corre o risco de perder-se de si mesma. Na última hipótese verifica-se o triunfo das nulidades, como já dizia o bom e sábio Rui Barbosa.

Escrito por Ayrton Marcondes

20 janeiro, 2010 às 10:25 am

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Telefones e outras engenhocas

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photo_173_20080825Não me olhe com essa cara estranha só porque estou confessando que não vejo muita utilidade nesses telefones multifuncionais. A verdade é que os telefones deixaram de lado a sua função principal – a comunicação entre pessoas – para se tornarem aparatos de várias utilidades, espécie de x-tudo, a ponto de neófitos como eu se perguntarem se a telefonia anda nos trilhos certos.

Outro dia me ofereceram na rua um telefone pirata que, dizia o vendedor, tinha todas as funções do original. Para provar, ele puxou uma pequena antena e mostrou no visor cenas exibidas num canal de televisão. Viu? – perguntou ele. E sorriu, explicando que a única diferença era o preço, obviamente bem mais baixo que o do original.

Atraído pela engenhoca que, entre outras funções, é um mini aparelho de televisão, perguntei a um amigo sobre a qualidade dos telefones vendidos na rua pelos camelôs. Explicou-me o amigo que se trata de bons aparelhos, mas de durabilidade bem menor. Podem dar problemas - disse ele – principalmente se forem de tela de toque. A origem? Ora, logicamente a China, país que produz de tudo, até réplicas aceitáveis de quadros de arte. Você pode ter um Van Gogh na sala de sua casa e dar-se por satisfeito desde que não seja um especialista ou não fique atrás de detalhes. Essa alegria pseudocultural que beira o kistch é patrocinada pela China onde alguém teve a idéia de reunir numa cidade pintores de boa mão, para reproduzirem quadros de arte.

Mas, voltemos aos telefones. O meu amigo entendido em tecnologia me contou que na China existem milhares e milhares de pequenas empresas, reproduzindo aparelhos de toda espécie, inclusive telefones. Segundo ele, tal é a dimensão do mercado de peças naquele país que, da noite para o dia, um grupo de mais ou menos oito pessoas torna-se capaz de montar e produzir similares de produtos comercializados no mundo todo. É por isso que os lançamentos de telefones pelas grandes empresas são revestidos por segredo e muita segurança: existe o risco de os novos modelos serem copiados e chegarem ao mercado paralelo antes dos originais.

O certo é que para pessoas como eu, esses novos telefones parecem coisa estratosférica, tal a quantidade de recursos que apresentam. Eles se tornaram uma coqueluche dos tempos atuais e arrastam legiões de apaixonados que os compram por altos preços. A cada vez que entro num shopping center de cidade grande, e passo defronte uma loja de telefones, fico abismado com o número de pessoas nas filas, à espera de serem chamadas para comprar ou trocar seus aparelhos. Pelo que concluo que nessa história toda quem está na contramão sou eu ao achar que telefones não precisam de tantos recursos.

Apesar disso, ainda acho que tenho alguma razão nessa história toda. Recentemente, na época do natal, descobri por acaso que pretendiam me dar de presente um smartfone. Juro que tremi nas bases como alguém prestes a receber um aparelho dotado de um botão secreto que, caso apertado, poderia destruir o mundo. Desesperado, entrei na internet para ver o que é um smartfone e descobri que se trata de um aparelho inteligente que roda a sistemas operacionais como o Windows Mobile, o palm OS e o symbiam OS. Por essa razão, são capazes de rodar aplicativos no formato .sys, fato que dá a eles grande versatilidade: rodam processadores de texto, editores de imagens etc. Um desses smartfones é o iphone que funciona com o MAC OS X. Parei nesse ponto, visto que não alcancei grande parte do significado das coisas que estava lendo

Na noite de natal esperei ansiosamente o momento de receber o meu presente, já resignado a ser mais um feliz proprietário de um smartfone. Na hora deram-me um pacotinho e tive certeza de que o meu destino fora selado, nada poderia fazer senão ler o manual e tentar, pelo menos, aprender como fazer ligações telefônicas com ele. Entretanto, qual não foi a minha surpresa ao abrir o pacote: ganhei um GPS.

Agora coloquei o GPS no carro e estou em fase de entendimentos com ele. Dentro da caixinha de plástico tem uma mulher que fala o tempo todo, dando-me ordens sobre os caminhos que devo seguir. Às vezes ela me irrita porque não concorda com as minhas escolhas e fica repetindo que está refazendo o trajeto.

Uma caixinha que fala e mostra as ruas por onde estou passando, veja você. Se me contassem isso há alguns anos eu teria dado uma sonora gargalhada na cara do mentiroso.

Haiti

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Há partes deste vasto mundo que parecem ter sido criadas para a ocorrência de desgraças e sofrimento. O Haiti sempre foi o pólo oposto do desenvolvimento e da paz. Parece pairar sobre o país uma espécie de maldição que o impede de progredir e beneficiar seus habitantes com mínimas condições de um padrão de vida aceitável.

O Haiti sempre foi e nunca deixou de ser um pouco de Papa Doc, Baby Doc e Ton Ton Macute. O Haiti sempre foi a terra dos zumbis, do vodu e dos mais complexos sincretismos religiosos capazes de unir ortodoxias religiosas a ritos tribais. O Haiti é a terra do absurdo, da estagnação, das revoltas, da violência, da enorme pobreza, do que há de mais atrasado em termos civilizatórios.

Foi sobre um país refém das circunstâncias anteriormente citadas que o grande terremoto se abateu. De nada adianta os geólogos explicarem as grandes possibilidades de abalos sísmicos na região ou se referirem aos movimentos das placas tectônicas: tinha que ser no Haiti e ponto final. Tinha que acontecer num lugar de edificações precárias e ausência de infra-estrutura em todos os setores. Só num lugar assim a destruição e o sofrimento poderiam ser tão grandes, de dimensões quase incomensuráveis.

Ah, se pudéssemos apagar tudo isso, voltar no tempo, evitar o inevitável. Seríamos poupados das imagens terríveis que nos perseguem durante a vigília e invadem os nossos sonhos. Não veríamos os prédios desabados, os corpos em putrefação nas ruas, os cadáveres lançados à vala comum, a precariedade do atendimento médico, a falta de água e gêneros alimentícios, o desespero dos que perderam famílias inteiras, a agonia da falta de notícias, o desentendimento entre membros de governos estrangeiros na luta pela primazia do rótulo de benfeitores, os saques, a revolta da população, o êxodo dos haitianos e a escalada da violência.

A realidade que o Haiti nos passa a cada dia é forte demais, desafia a nossa compreensão, faz-nos perguntar pelo Deus que permite tamanha desgraça e tanto sofrimento. Faz-nos, ainda, questionar sobre as escolhas da morte que a uns poupa e a outros leva sem maiores explicações, com se fora tudo natural e parte do exercício de estar vivo.

Um amigo me disse: isso jamais poderia ter acontecido. Ao que respondi:

- Mas foi no Haiti, só poderia ter sido no Haiti.

Escrito por Ayrton Marcondes

18 janeiro, 2010 às 12:17 pm

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Breve notícia sobre Joaquim Nabuco

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Joaquim Aurélio Nabuco de Araujo (Recife, 19 de agosto de 1849 – Washington, 17 de janeiro de 1810) foi um dos brasileiros mais influentes de seu tempo. Educado na infância por sua madrinha, proprietária do Engenho de Massangana, aí viveu os seus oito anos primeiros anos, ocasião em que mudou para o Rio de Janeiro, onde foi morar com seus pais. O pai, José Tomás Nabuco de Araújo, mudara-se para o Rio para exercer as funções de deputado e, mais tarde, de Senador do Império.

Hoje, 17/10/2010, completam-se 100 anos da morte de Joaquim Nabuco, ocorrida em Washington e ocasionada por uma congestão cerebral. Na época, Nabuco exercia a função de embaixador do governo brasileiro em Washington onde se tornara figura notável. De fato, granjeara respeito e amizade do presidente norte-americano Theodore Roosevelt e tornara-se, até mesmo, uma espécie de atração turística: por ser homem de rara beleza e perfil aristocrático conta-se que os cocheiros paravam defronte a casa dele para dizer que ali morava o homem mais belo da América. Pela beleza pessoal Nabuco era chamado de “Quincas, o Belo”.

Atrativos pessoais a parte, Nabuco notabilizou-se como diplomata, político, orador, poeta e memorialista.  Foi importante líder abolicionista e amigo pessoal de Machado de Assis – as cartas entre eles foram reunidas em livro com um precioso prefácio de Graça Aranha.  Quando da Proclamação da República Nabuco, ferrenho monarquista, desiludiu-se, entregando-se à produção de seus livros. Só anos mais tarde, a convite do então presidente da República Campos Salles, aceitou a função de advogado do Brasil, na defesa dos direitos do país na disputa com a Grã-Bretanha pela fixação das fronteiras da Guiana Inglesa.

Joaquim Nabuco terá sido um dos maiores intelectuais brasileiros daí, com muita justiça, ser considerado como um dos intérpretes do Brasil. As gerações mais recentes, para quem Joaquim Nabuco é desconhecido, muito têm a aprender com esse notável brasileiro que, entre outras realizações, deixou-nos obra da qual se destacam os livros “Minha formação”, “Um Estadista do Império” e “O Abolicionismo”.

“Minha Formação” foi publicada em 1900. Trata-se de um livro de memórias, intelectualmente muito rico e com reflexões políticas, principalmente sobre o liberalismo. A obra tem pretensões de ser autobiográfico. Entretanto, não fica só nisso, abarcando vasta temática ligada às inquietações intelectuais do autor, sua experiência e o contato com grandes personalidades de seu tempo. Critica-se no livro o deslumbramento de Nabuco com o luxo e o aparato, aliás, confesso. Mas, trata-se de obra escrita por um grande erudito, importante em vários aspectos, inclusive no que trata da participação do autor na campanha abolicionista no qual a obra se apresenta menos biográfica e mais histórica.

“Um Estadista do Império” apareceu, pela primeira vez, em 1898, impressa em três volumes. A obra é a biografia do pai, o Senador Nabuco de Araújo. Para escrevê-la Joaquim Nabuco valeu-se do arquivo do pai do qual faziam parte cerca de 30.000 documentos, distribuídos entre recortes de jornais, cartas, discursos etc. Em conjunto a obra aborda a História do Brasil através da participação do político, jurista e notável orador, Nabuco de Araújo.  Obra de fôlego caracteriza-se pela isenção de seu autor que busca retratar um período da história do país realçando os perfis dos homens que dela participaram.

“O abolicionismo” foi publicada em Londres, em 1883, com a intenção de ser obra de propaganda não dirigida aos escravos, a quem não seria lícito incitar uma revolta , mas aos cidadãos brasileiros a quem cabia a extinção urgente do cativeiro. Outra intenção do texto era combater a idéia difundida no estrangeiro de que a escravidão brasileira seria mais branda que a de outros países da América. O livro não se esgota, entretanto, na proposta de colocar um fim ao regime escravista, considerado criminoso: Nabuco estuda e propõe as opções para o país depois da Abolição. Após apontar o monopólio da escravidão, interligado aos monopólios da terra e do comércio que impediu a formação de pequenas propriedades e de uma classe média, Nabuco propõe um novo modelo de país sem a escravidão. Trata-se de uma grande reforma, espécie de “revolução pacífica” que passaria por uma “democratização do solo”, a reeducação da elite política e a prática do verdadeiro liberalismo.

Uma “breve notícia” obviamente visa apenas chamar a atenção sobre uma grande personagem de nossa história e as obras que escreveu. No caso de Joaquim Nabuco, seus textos continuam vivos cem anos depois de sua morte. Vale a pena conhecer o escritor Joaquim Nabuco, um erudito como poucos, considerado por muitos estudiosos como o mais lúcido e inteligente entre os intelectuais brasileiros.

De “Minha Formação” existem edições de 2004: a da Martin Claret e a da Itatiaia Editora; “Um Estadista do Império” foi editado em 2v, pela TopBooks,  em 1997; “O abolicionismo” tem uma edição de 2003, pela UNB. De todo modo, caso não sejam encontrados em livrarias, esses livros podem ser obtidos em sebos.

“Machado de Assis & Joaquim Nabuco, Correspondência. Organização, Introdução e Notas de Graça Aranha” está em 3ª edição pela TopBooks.

Manuscrito de Autor Desconhecido

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Há cerca de três anos estive na antiga sede da Faculdade de Medicina da Bahia, localizada no Terreiro de Jesus, em Salvador. Encontrei o prédio em fase avançada de deterioração, aguardando a restauração que não sei se já foi realizada. Mais constrangedora que a situação do prédio era a dos milhares de livros antigos, abandonados no andar inferior e expostos à poeira e intempéries. Realmente, era de causar tristeza observar o triste destino reservado a obras que serviram, em épocas passadas, à formação de médicos, alguns deles de grande projeção no cenário nacional. A lembrança de nomes como os de Nina Rodrigues, Manuel Vitorino, Afrânio Peixoto, Oscar Freire, Alfredo Brito, Juliano Moreira, Martagão Gesteira, Prado Valadares, Pirajá da Silva e Gonçalo Muniz ilustra o que acabei de afirmar.

Eu folheava um exemplar da “Terapêutica Clínica”, de Martini, editada em Madri, em 1929, quando deparei com um livro de higiene, escrito em francês, do qual haviam se perdido a capa e as páginas iniciais, tornando impossível identificar o autor e o ano de publicação. Entretanto, era possível ver, pendendo do interior de suas páginas, as bordas desgastadas de folhas que, possivelmente conteriam anotações de alguém que fizera uso do livro.

Atraído pela possibilidade de encontrar algo inédito abri o livro e retirei as folhas anexas de seu interior. Na verdade tratava-se de um manuscrito que tive muita dificuldade em ler dada a letra difícil, rasuras e mesmo deterioração de parte do papel.

Nos dias seguintes dediquei-me a recompor o texto do autor desconhecido. Fui obrigado a interferir, adaptando-o à linguagem atual e completando frases que me pareceram ininteligíveis. O resultado foi uma espécie de conto com características comuns à literatura do século XIX. É o que reproduzo a seguir:

“No encontro de variedades em que se faziam perguntas sobre assuntos gerais alguém perguntou:

- O que leva um homem a matar uma bela mulher a quem ama?

As respostas dos participantes foram óbvias, não fugindo ao padrão. As mais frequentes razões apontadas foram ciúme e traição.

Até que um senhor bem velho, levantou-se do meio do público e gritou:

- Eu matei a minha mulher, a mais bela entre todas. E não foi por ciúme ou traição.

A surpresa provocada por tais palavras foi enorme. Muitos ohs percorreram fileiras de bocas entreabertas, algumas delas com a crispação de dentes. De todo modo, gerou-se ali um circulo de energia violenta concentrado no homem que proferira aquelas terríveis palavras. Foi então que o velho decidiu se explicar. Disse ele:

- Era ela a mais bela entre todas as mulheres. A fama de sua beleza espalhara-se por toda a região a ponto de que, à nossa porta, ficassem pessoas à espera de que, por sorte ou acaso, pudessem vê-la. Entretanto, dentro de casa vivíamos um drama inexplicável: nenhuma felicidade existia em nosso lar. A minha bela mulher ficava o tempo todo recolhida a um aposento, ajoelhada diante de um pequeno altar. Rezava horas seguidas a ponto de não comer e enfraquecer-se. Dia após dia eu a via ali, ajoelhada e definhando, sua beleza escoando-se como as águas de um lindo riacho que seca devagar.

Era a situação insustentável. Certo dia, encontrei minha mulher caída e a recolhi ao nosso leito. Um médico, chamado às pressas, foi incapaz de diagnosticar o seu mal. De nada valeram os remédios que a ela foram dados. No final, transformara-se aquela beleza estonteante num arcabouço de ossos revestidos pela pele alvíssima que só se vê nos cadáveres. Entretanto, seu rosto mantinha-se lindo, como a zombar de seu corpo.

Foi um período terrível aquele. Entretanto, curiosamente, apesar do estado terminal de saúde de minha mulher, não conseguia ela morrer. Dias se passavam com ela em franca agonia sem que se chegasse ao desenlace final. Ela já não falava e havia quem dissesse que não respirava. Ainda assim, continuava viva.

Certa noite, porém, estava eu velando por ela quando percebi que me chamava. Aproximei meu ouvido de seus lábios e ouvi dela terrível confissão. Nascera ela feia, horrorosa, tão feia que jamais saía à rua. Tivera uma infância infeliz: zombavam de sua feiúra chegando a atirar pedras para afugentá-la. Isso durou até, certo dia, encontrar um senhor que falou com ela amenamente e a consolou. Aquela que mais tarde seria a minha mulher não teve forças para resistir ao trato que ele lhe ofereceu: a troca de sua alma pela beleza.

Foi assim que ela tornou-se bela. Brilhou em salões até casar-se comigo, homem de posses a quem disse ter amado. Isso durou até que o homem a quem vendera a sua alma veio cobrá-la. Entretanto, ela se recusara e ele, por vingança, condenara-a a definhar e sofrer indefinidamente. Restava-lhe morrer, coisa que o encantamento de que fora vítima a impedia exceto se assassinada por quem mais a amasse. Por isso, implorava que eu a matasse.

Fiquei pasmo com tal confissão. Era eu incapaz de matar um pequeno animal que fosse, que dizer a minha própria mulher. Desesperado, contratei um assassino que, na penumbra, introduzi no quarto para esganá-la. Ele bem que tentou, apertou o pescoço, sufocando-a com o travesseiro. No fim, vendo que ela não morria, saiu correndo do quarto e nunca mais o vi. Nessa ocasião toda a casa encheu-se de fortes e estranhos odores, desesperando-me ainda mais.

O fim de nosso padecimento é já conhecido. Eu a matei. Fiz por amor e para livrá-la de seu sofrimento.

Desde então tornei-me um peregrino. Atravessei épocas vagando pelo mundo até entender que ao matar a minha mulher assumi o lugar dela na jura de eternidade maldita.

É assim que vim parar aqui, em meio de tanta gente, por ocasião deste encontro de perguntas.

Tendo falado assim, o velho levantou-se e saiu em meio a grande silêncio. Houve quem duvidasse de sua história. Outros acharam que talvez fosse ele o próprio o Anjo Caído. Duas senhoras muito religiosas afirmaram ter sentido odores infernais durante a fala do velho.

O certo é que ele desapareceu e, depois desse dia, o encontro de perguntas deixou de ser realizado. “

No final do texto deparei com um comentário do autor: escrevera a história baseado no relato de um paciente a quem atendera. O paciente o procurara em busca de um veneno infalível que pusesse fim à vida dele. O médico se recusara, para isso alegando o Juramento de Hipócrates.

A última coisa que encontrei no manuscrito foi um traço meio apagado, provavelmente parte de uma assinatura que me permitiria, talvez, investigar a veracidade da história.

2012

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2012, o filme do diretor Roland Emmerich tem um grande mérito: condensa toda a trajetória do cinema-catástrofe numa única película. Antes de 2012 tínhamos filmes, por assim dizer, temáticos: incêndios, desastres aéreos, naufrágios, terremotos, inundações etc. 2012 é a soma de todas as catástrofes com um único fim: mostrar ao público como seria o fim do mundo em que vivemos. As tramas paralelas, a família que busca salvar-se, o desespero das multidões e mesmo os diálogos não passam de acessórios utilizados para intensificar a dimensão do estrago. O que é importa mesmo são as cidades deslizando para dentro das águas e o oceano cobrindo tudo aquilo que um dia foi o mundo que conhecemos.

Para além dos efeitos especiais que impressionam e deprimem o espectador ficam as intenções do diretor. Sua visão é reducionista: para ele tudo o que somos e acreditamos parece não passar de uma grande mentira. Partindo de tal premissa ele arremessa à mesma vala tudo o que conseguiu reunir sob a forma de símbolos da humanidade. Não é por acaso que o Papa é mostrado em plena Praça de São Pedro, em Roma, orando com milhares de fiéis no momento em que a terra treme e todo o Vaticano desaba; nem é por acaso que a estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, é mostrada quebrando-se; de nada valem a religião, as filosofias orientais, o budismo, enfim, nada vale nada porque os nossos valores não podem salvar o mundo. A clemência com a cidade de Washington dura o tempo necessário para colocar o presidente dos Estados Unidos como um ser de rara coragem, recusando-se a salvar-se para morrer heroicamente, engolido pelas águas, junto de seu povo.

A política não é poupada, revelando-se o lado obscuro das almas no momento em que a possibilidade de salvar uns poucos se apresenta como um mecanismo de escolha de eleitos segundo as suas posses. As imagens da Casa Branca sendo destruída encerram o ciclo de um domínio político e econômico sobre um planeta que deixa de existir.

Mas o pior é reservado para o fim, no qual um novo Deus emerge da destruição global. Esse Deus é a tecnologia. Ela é utilizada para construir um artefato capaz de salvar uns poucos eleitos que povoarão a Terra no momento em que o que restou dos continentes emergir.

2012 não é um filme agradável. Baseando-se em previsões como a data de  encerramento do calendário Maia, o diretor parece divertir-se em expor-nos ao absurdo da destruição sem remédio, gritando que não somos nada e que tudo, absolutamente tudo, pode acabar de repente.

2012 não passa de um filme de efeito especiais. É ótimo para quem gosta de ver coisas arrasadas, considerando que se trata de uma brincadeira, que a ficção jamais se tornará realidade. Entretanto, se o espectador for uma pessoa que pensa, trata-se de uma produção sombria que beira, com muita insistência, o mau gosto.

A morte de D. Zilda Arns

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O que chama a atenção no episódio que vitimou D. Zilda Arns é, por assim dizer, o capricho da fatalidade. Médica pediatra, sanitarista e fundadora e coordenadora da Pastoral da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa, Zilda Arns tinha viajado para o Haiti no último fim de semana. Sua missão era levar para o país mais pobre das Américas a metodologia de atendimento da Pastoral da Criança no combate à desnutrição.

No momento do terremoto D. Zilda estava numa escola fazendo uma palestra. Com o abalo sísmico que sacudiu o Haiti o prédio desabou, sendo D. Zilda atingida por uma laje. Ela não resistiu ao impacto e morreu.

As fatalidades sempre impressionam e nos levam a perguntar por que determinada pessoa estava em certo lugar justamente na hora de um acontecimento grave. D. Zilda poderia ter viajado para o Haiti em qualquer outra ocasião, mas quis o destino, ou o que seja, que ela estivesse lá, dentro de um prédio que iria desabar no momento de ocorrência do terremoto.

É certo que ponderações como as anteriores carecem de valor e o acaso surge como o grande articulador da tragédia acontecida com D. Zilda. Entretanto, a singularidade do evento não deixa de ser estranha e incomoda dada a sensação de perda irreparável que poderia, talvez, ser evitada. O certo é que a morte veio interromper, naquele lugar, uma vida de grande plenitude caracterizada pela prática do bem e ajuda humanitária aos semelhantes.

É essa estranha força que parece guiar destinos e dispor de vidas a seu bel-prazer que chama a nossa atenção neste momento.  Destruição, mortes e sofrimentos inenarráveis abateram-se sobre um país onde as condições de vida já eram inaceitáveis. As imagens que vemos pela televisão emocionam tal a dimensão do desastre fazendo-nos refletir sobre governos e desigualdade.

A perda de D. Zilda terá, talvez, o mérito de chamar a atenção dos povos da Terra sobre as dimensões da miséria agora exposta a céu aberto, contra a qual medidas concretas são necessárias. É nesse ponto que nos parece que o capricho do destino teve o seu lado positivo: D. Zilda estava lá, em meio aos pobres e desvalidos no momento da tragédia. Não terá sido, então, por acaso. Por isso, as mais lúcidas palavras sobre o desaparecimento de D. Zilda tenham partido de seu irmão, D. Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo. Compreendendo de imediato a dimensão da morte da irmã, nas circunstâncias em que ocorreu, disse o arcebispo:

 “Ela morreu de uma maneira muito bonita, morreu na causa que sempre acreditou”.

A um amigo estrangeiro: a corrupção no Brasil

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cartaUm amigo estrangeiro me escreveu perguntando sobre os casos de corrupção no Brasil noticiados pela imprensa de vários países. Enviei a ele o texto abaixo, tentando explicar como se passam as coisas neste lado do Atlântico:

“ Caro amigo

Os acontecimentos ocorridos no Distrito Federal envolvendo o governador, o presidente da Câmara e muitos outros políticos já não escandalizam a população, habituados que estão os brasileiros à permanência em cargos públicos de pessoas envolvidas em atos de corrupção.

Houve tempo em que a corrupção aparecia no país como sintoma de que algo estava errado nas máquinas administrativas. Tratava-se, apenas, de um primeiro estágio que evoluiu ao segundo, o de doença, para logo depois mostrar-se com características epidêmicas. De fato, a doença se espalhou tornando-se, atualmente, incontrolável.

É preciso destacar que, no Brasil, a corrupção deixou de ser atividade de exceção; nos dias atuais ela estabeleceu-se como padrão de rotinas que conquistam inúmeros seguidores os quais, por sua vez, aliciam novos adeptos, gerando-se um movimento organizado de dinheiros repartidos proporcionalmente entre um número cada vez maior de pessoas.

Alçando-se ao estatuto de profissão, a corrupção oferece a vantagem de não exigir de quem queira praticá-la formação ou diploma específico. Qualquer um pode se tornar corrupto desde que tenha oportunidade e se aproxime de outros partícipes de atos de corrupção. Isso acontece porque é raro que um corrupto de carteirinha pratique o seu ofício sozinho. Como você sabe a corrupção exige aliados, transferências de bens, aliciamentos, pactos de silêncio e, principalmente, nenhuma vergonha. Nisso tudo, os corruptos brasileiros são muito bons, daí que não se duvide de que possam, em médio prazo, exportar práticas seguras de assaltos ao patrimônio público.

Frequentemente lê-se nos meios de comunicação pronunciamentos de autoridades juradas no combate à corrupção. A tônica de seus discursos sempre envolve dificuldades jurídicas ligadas às imunidades parlamentares, prazos, morosidade da Justiça, recursos impetrados etc. Vale dizer que corruptos de mais alta hierarquia conhecem profundamente todos os mecanismos jurídicos e suas válvulas de escape. Além disso, dispõem eles de altas somas de dinheiro subtraídas ao erário público que lhes permite a contratação dos melhores advogados. Certos, ainda, de que a Justiça não mudará – as regras são sempre mantidas –dispõem eles de vasto campo de ação, mantendo-se em seus cargos e, dada a sua desfaçatez, prosseguindo com suas atividades de corrupção. Não será demais citar casos em que corruptos chefiam justamente a máquina legislativa encarregada de avaliar e encaminhar os atos por eles praticados. É à impunidade daí decorrente que se dá por aqui o nome genérico de “pizza” ou “terminar em pizza”, como se diz.

Já não se nota nos brasileiros qualquer estranhamento por ocasião da descoberta de novos casos de corrupção: nenhuma surpresa pode advir de atos que já fazem parte do cotidiano, sem emoções previstas dado os finais esperados de impunidade. A única coisa que ainda espanta um pouco é a cada vez maior profissionalização dos praticantes dos atos de corrupção: mesmo depois de flagrados, ressurgem eles em público com ar contrito, dizendo-se perseguidos e acusados pelo que não devem. Há casos em que acusados de corrupção pedem perdão em cadeia nacional, beirando as lágrimas, mas sempre eximindo-se de culpas que juram não serem deles. Teriam sido envolvidos, portanto, por pessoas nas quais confiaram. É o que dizem em nome de Deus e de suas famílias.

Assim caminha o Brasil, assim prevalece a corrupção. Por outro lado, importa citar que aqui na terra o eleitorado é dado a crises de amnésia por ocasião de eleições. Talvez por terem ciência disso, os corruptos utilizam meios jurídicos para continuarem em seus cargos, ainda que flagrados e acusados de corrupção; mais que isso, candidatam-se e são reeleitos como se nada houvera acontecido. Verdade que para as reeleições contribuem derramas de dinheiro público junto ao eleitorado de gente mais simples cuja gratidão pela ajuda recebida manifesta-se nas urnas. Trata-se de um curioso processo bem brasileiro que atualmente substitui outros meios não recomendáveis de vencer eleições, infelizmente comuns em nossa história passada.

Caro amigo, escrevo depressa, sem me propor a tecer um painel mais elaborado da corrupção no Brasil. Existem verdadeiros tratados sobre o assunto que podem ser achados em livrarias e bibliotecas. O que tentei foi atendê-lo, traçando poucas linhas sobre detalhes que, para nós brasileiros, não passam de obviedades.

De todo modo, o Brasil não é fácil, não. Por isso, não sei se me fiz compreender bem.

Um grande abraço do amigo ”

O futebol e os pés

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Segundo o jornal alemão “Der Spiegel” temos pés apenas porque existe o futebol. Trata-se de uma curiosa inversão evolutiva que faria Darwin revirar-se em seu túmulo: primeiro teria surgido a bola; pela necessidade de chutá-la apareceram os pés. Na verdade a frase anterior está mesmo é ligada à teoria evolucionista de Jean Baptiste Lamarck. Pela teoria de Charles Darwin seria assim: existia a bola, os seres que ao acaso desenvolveram pés os usaram para chutá-la.

Teorias evolucionistas a parte é de se pensar se não temos cabeça e cérebro porque a bola apareceu primeiro. Pelo amor de Deus, não se trata de coisa do tipo quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha. Acontece que o futebol é uma paixão tão grande, gastamos tanta energia mental com ele, que não será impossível termos sido criados apenas para ser torcedores. Depois, com a evolução, passamos a servir para outras coisas…

Quem duvida que ande por aí e observe os semblantes preocupados dos torcedores com as contratações de seus times para os campeonatos que já começam na semana que vem. Fulano de tal jogou naquele time e não foi bem, agora contrataram o cara para o meu, que besteira… por que não contrataram um bom meio-campista…na verdade precisamos é de um bom goleador etc.

Isso tudo, na pré-temporada. Quando os jogos começarem alegrias e tristezas, regadas a muito nervosismo, acontecerão. Aquele juramento que fizemos no ano passado de não mais acompanhar o campeonato de 2010 será negado na primeira notícia de vitória do time do nosso coração. E as nossas mulheres, pobres das nossas mulheres, habituadas, mas nunca conformadas, com o nosso mau humor dos domingos de derrota e as manhãs tensas de segunda-feira, que tipo de armistício devemos assinar com elas?

Torcedores: é impossível resistir. Fostes criados para servir sob as fileiras, bandeiras e hinos dos vossos times. Sois devotos de algo entranhado no vosso DNA e, portanto, irreversível. Uma força maior, anterior à espécie, determinou que assim seria e nada se pode fazer contra isso. Flamenguistas, corintianos, são-paulinos, gremistas, cruzeirenses, ouvi: sois escravos de uma paixão da qual só a morte poderá livrá-los, isso se do lado de lá não existir futebol.

Portanto, conformai-vos. E lembrai-vos: a regra é o sofrimento, mas intercalado com momentos de alegria, alegria breve, mas que alegria.