2009 outubro at Blog Ayrton Marcondes

Arquivo para outubro, 2009

Ao meu tio Edésio - notícias sobre o futebol

com um comentário

Escrevo para dar noticias sobre o seu esporte favorito: o futebol.

Em primeiro lugar vou falar sobre o seu time do coração, o São Paulo, que o senhor em momento inspirado apelidou de “Colosso”. Pois o Colosso vai mais ou menos bem, obrigado. Depois de ganhar pela sexta vez o Campeonato Brasileiro, o Colosso se acomodou e deu para perder competições. Foi assim com o Campeonato Paulista e a Taça Libertadores da América. Agora o Colosso está na disputa do Campeonato Brasileiro, mas com tantos altos e baixos que o melhor é não acreditar muito que ele possa vir a ser campeão.

Na verdade, tio, o futebol mudou muito de uns anos para cá. Cada vez mais um grande negócio, o futebol de hoje globalizou-se no pior sentido do termo: os bons jogadores atuam fora de seus países e só se reúnem para jogar pelas seleções nacionais. Posso garantir que o senhor acharia realmente incrível o fato de a Seleção Brasileira entrar em campo, hoje em dia, sem nenhum jogador atuando no Brasil. Pois isso acontece muitas vezes dado que os jogadores estão mais para caixeiros-viajantes de sua arte que atletas de futebol.

Tudo muito diferente, tio, dos bons tempos em que sabíamos as escalações dos times e quem jogava nessa ou naquela posição. E olhe que isso tem afetado até mesmo o amor à camisa: acredite o senhor que, na última Copa do Mundo, o Brasil foi desclassificado e os jogadores saíram de campo como se tivessem participado de um jogo de várzea, alguns muito sorridentes. Atrás deles um país inteiro torcendo e sofrendo. Tio, eu não me envergonho de confessar: quando vi aquilo me senti um grande idiota por ter torcido pelo Brasil. Pode uma coisa dessas?

Mas, voltemos ao Colosso. O grande clube está envolvido com a realização da Copa do Mundo de 2014 que acontecerá aqui no Brasil. O senhor deve se lembrar bem do Morumbi, o campo sagrado dos tricolores. Lembra-se, também, da dureza que foi o período de construção do estádio durante o qual o senhor e outros tricolores fanáticos sofreram muito porque o Colosso não tinha dinheiro para montar um bom time. Anos e anos de luta e sofrimento da torcida resultaram na posse de um grande estádio, orgulho da cidade de São Paulo e palco de jogos memoráveis. Pois agora, o Morumbi é o estádio mais cotado para a realização de jogos da futura Copa do Mundo na cidade de São Paulo.

Entretanto, meu caro tio, não é que um tal Joseph Blatter, presidente da FIFA, deu de falar mal do  Morumbi, dizendo que não serve para a Copa e outras barbaridades? O mais triste é que tem muita gente de outros estados vibrando, o que é inaceitável – trata-se da velha rivalidade. A verdade é que Blatter rebaixou o estádio que tem o apoio do governo do Estado e da prefeitura da capital. Tem gente por aí falando em lobby de outros estados contra São Paulo. No final das contas o que a FIFA diz é que o estádio não tem condições de abrigar 65 mil pessoas e assim por diante. Os dirigentes do Colosso discordam, afirmando que o clube fará a sua lição de casa e atenderá às exigências da FIFA até a realização da Copa.

Aliás, tio, não custa nada contar para o senhor alguma coisa sobre a FIFA. Imagine que essa entidade negociou com “alguém” do governo - que ninguém diz quem é - a isenção total de impostos para patrocinadores, fornecedores, enfim todas as empresas ligadas à realização da Copa do Mundo. Trata-se de muito dinheiro, uma enormidade de negócios. Só que agora o pessoal da Receita Federal, que pelo jeito acaba de saber disso, está se opondo a esse absurdo. Ainda bem.  Imagine o senhor que todos nós aqui damos um duro desgraçado e o governo do país nos impõe uma das mais altas taxas de impostos do mundo. Ai vem para cá essa turma toda e, na cara dura, é favorecida. Pode? O senhor não acha um absurdo?

Pois é. Mas, tio Edésio, isso não é tudo. Veja que tamanha desfaçatez baseia-se numa exigência da FIFA para a realização da Copa no Brasil, exigência essa que foi aceita por “algum negociador” que certamente não agiu sozinho. Esse(s) negociador(res) deve(m) ter até um chefe, tio, embora nisso as coisas não tenham mudado porque “neste pais” ninguém sabe de nada quando a podridão vem à tona.

O que espanta é que a FIFA, presidida pelo tal Blatter (o Havelange deles), não é um negócio pequeno, muito pelo contrário. A entidade movimenta por ano cerca de metade do PIB da Argentina, país que faz parte do G-20, o grupo de países que conversa sobre a economia do mundo. É dinheiro prá caramba que a FIFA movimenta, muito mais que o PIB anual de inúmeros países.

Diante disso tudo, a alegria que resta é a de dar a louca nos jogadores e o Colosso vencer o campeonato deste ano. Se acontecer, prometo escrever contando tudo para que o senhor comemore aí.

Tio Edésio eu raramente escrevo cartas, o senhor sabe como é isso.  Mas hoje me deu vontade de enviar essas mal traçadas.  O senhor nos deixou há muito tempo e o mundo em que vivemos está bem diferente daquele que o senhor conheceu. Mas, não se preocupe: continuo o mesmo cara de sempre, talvez um pouco fora de moda por acreditar em valores que têm sido esquecidos por boa parte das pessoas.

Essas são as notícias aqui da terra que eu queria passar para o senhor que, tenho certeza, continua sendo um grande apaixonado pelo futebol.

Um grande abraço e muita saudade.

Página em branco

escreva o seu comentário

papelbrancoOra, aí está você, bem acomodado, página em branco ou um editor de textos ao seu alcance. Como nos videogames, você é o herói dessa história e a sua missão é escrever alguma coisa, um texto qualquer. Esse o seu desafio.

Ótimo, você é maníaco por games, mas de cara percebe que este é diferente, uma vez convertido em herói seus poderes tornam-se ilimitados, pode escrever o que quiser, até mesmo ferir o papel com um rabisco. Entretanto e como em tantas outras situações, você não sabe usar o poder e, cá entre nós, não tem a mínima idéia do que vai escrever. Mas como todo herói de respeito, não deixa que ninguém perceba o seu impasse, sorri e resolve pensar um pouco enquanto suas mãos brincam com essa arma terrível que é a caneta.

Bem, a primeira coisa em que pensa é em contar algo que aconteceu a você e aí surge o primeiro problema: melhor uma história alegre ou triste? Viu só, com um balanço de cabeça e uma ajeitada de cabelo você já saiu de onde estava e atingiu o limiar da comédia e do drama. Você consulta o seu espírito, não, o dia hoje talvez não esteja para piadas, o melhor será um drama, talvez até mesmo uma tragédia. Claro, existem tantas histórias de tragédias, que tal a de um ônibus cheio de crentes despencando numa ribanceira, como se explica que tanta gente de fé morra junto e na mesma hora? Não, isso não, talvez não seja o caso de contar uma coisa assim, lembre-se de que filmes sobre acidentes não estão muito na moda, o mesmo em relação aos de incêndios e terremotos. Monstros? Ah, também não, hoje em dia eles só sobrevivem naqueles seriados japoneses para a televisão, meu Deus como você acha aquilo ruim, não, não, você não escreveria sobre monstros.

Diabo, você já pensou tudo isso e não escreveu nada! Bem, agora surge uma idéia: um sujeito numa estação de trens, as estações têm um ar romântico e de aventura, pode dar certo. Você parte para o primeiro parágrafo, conta que o sujeito está na estação, vai descrever o lugar onde ele está ou não? E o tal sujeito como ele é? Ou poderia ser ela? Caso seja ele, pode ser herói ou vilão; para ela o melhor é que esteja agoniada, esperando por alguém, isso dá um conto de amor, não, você brigou com a sua namorada e não quer falar sobre amor. Ok, então é ele. Velho ou moço? Bem ou mal vestido? Rico ou pobre? Vai falar do seu passado? Olhe que dá tempo enquanto ele espera o trem. Aliás, você não se decidiu ainda, ele está chegando ou partindo? Se estiver partindo, pode estar indo por vontade própria ou fugindo. Claro, você tem razão, alguém que foge é mais interessante, escreva isso, ele é um homem, bem vestido, moço e está partindo, tá bom, fugindo. Mas existe alguém atrás dele? Terá cometido um crime? O trem deve chegar logo para que ele escape da polícia? Pense bem, isso causa impacto, você pode descrever o estado de espírito do homem, não gosta da idéia? Então que seja, ele está fugindo de si mesmo, de um ciclo de vida que se encerrará assim que pegar o trem. Um sujeito moço, bem vestido, fugindo de si mesmo, numa estação, esperando o trem, você pretende embarcá-lo? Vai descrever a chegada do trem, a emoção da sua personagem ao deixar a cidade em que vive? Ou seria melhor inventar, na hora da chegada do trem, um grito às costas da personagem, dado por uma pessoa que chega de repente, alguém que não estava na história, alguém de quem ele estava fugindo? E esse alguém é um homem ou uma mulher? Meu caro, você não queria falar de amor, mas esse é o tipo de papel para ser vivido por uma mulher. Uma mulher gritando numa estação, tentando impedir a fuga do homem que ama, sinceramente, isso dá Ibope. Ah, claro, trata-se de uma mulher, não, nada de descrever o aspecto dela, se é bonita ou feia, na cabeça do leitor uma mulher assim só pode ser bonita, na verdade ela terá o jeito que cada leitor idealizar para a mulher que ele gostaria que o impedisse de embarcar num trem. Além disso, você sabe que uma mulher correndo e gritando compõe com um homem pronto para embaraçar uma cena de ação, daí nesse parágrafo não haver lugar para descrições, não acha?

Nossa, veja aonde você chegou. Ele está para embarcar e ouve o grito dela. E agora, você acha que ele volta? Aí você decide. Se preferir algo piegas, ele volta e, se voltar, meu Deus, que abraço. Se não, ele vai embora, ela não chega a tempo, o trem na verdade não pára, ele pula para dentro do vagão e ela fica na plataforma desesperada porque o perdeu para sempre.

Se a história acabou? Depende de você. Essa pode ser só a cena inicial, agora ele já está no trem, você resolve para onde ele vai, o que vai fazer; na página trinta você conta algo sobre a infância dele, na cinqüenta volta ao assunto, mas só para retomar à cena da estação e explicar porque ele estava deixando a mulher que amava e fingindo estar fugindo de si mesmo. Na página setenta e cinco talvez você abra o jogo com o seu leitor e o informe que o tal sujeito era um pastor que abominou Deus, um filósofo ou, ainda, um criminoso. Mas cuidado, um cara assim talvez não deva passar da página cem, ele foi só um começo, nesse meio tempo surgiu gente bem mais interessante na sua história, melhor arrumar um acidente ou uma doença que o mate antes da página cento e um.

Como? Não gostou da história? Achou banal, repetitiva, sem emoção? Bem, você pode jogá-la fora, faça o que quiser com ela. Ora, se quer mesmo comece um novo texto. Fique à vontade quanto ao seu futuro. Sabe, para dizer a verdade não era você, mas sim eu quem tinha à minha frente uma página em branco. Vamos, por favor, não se ofenda, mas você foi a personagem que escolhi: um sujeito incapaz de contar uma boa história e que apela para clichês. É que gosto muito de games, principalmente desses em que sou o herói e recebo a missão de povoar páginas em branco com gente como você.